Dóceis, submetemo-nos ao
planejamento suave, e nosso cotidiano fica preso ao “tornar-se
instituição” contra o qual podemos lutar considerando a nós
mesmos como uma obra por realizar. Tarefa penosa, pois
cumprida dentro de um sistema que regula nosso emprego do tempo,
planeja nossos deslocamentos, canaliza nossos comportamentos. Não
temos outra solução que não desviar, piratear, armadilhar a grade
de programação que nos atribuem.*
O fliperama e o videogame
(quando propositores de uma transformação) me oferecem maiores
perspectivas, pois é visível a liberdade que se apresenta além dos
obstáculos da hegemonia. Na Arte, a liberdade está enclausurada e
normatizada – o Artista reconhecido institucionalmente é um
privilegiado, pois pode gozar da suposta liberdade em absoluto
conforto, como o homem rico que é livre para viver entre grades e
cofres. Adequamo-nos à Arte por querermos liberdade, o que é como
deixar-se prender para ter tempo de ver o tempo passar. Em meio aos
mitos que sustentam as posições de privilégio e à invisibilidade
daqueles que são os marginais, os Artistas podem viver sua utopia
espetacular, eventualmente cooptando o que ainda há de vivo em suas
margens, com a euforia própria dos colonizadores.
Morte à indústria
dos jogos eletrônicos! Vida longa aos jogos eletrônicos! –
dizia o Manifesto Scratchware, escrito em 2000 por um grupo de
críticos e desenvolvedores de jogos amadores anônimos. Talvez
esteja neste manifesto o nascimento de uma consciência
contra-hegemônica na cultura do videogame, coincidindo com o final
de um período de transição da indústria: a obsolescência da
geração dos 16 bits e a consolidação do modelo Playstation – o
aspecto principal dessa transição consiste numa maior aproximação
estética e narrativa do videogame com o cinema e um afastamento de
suas equivalências no universo do jogo. O jogo torna-se mais “filme”
e, portanto, mais real. O scratchware surge para descrever um
formato de jogo (e um campo social do videogame) que resiste às
tendências industriais. Em oposição aos grandes estúdios
corporativos, suas complexas hierarquias e políticas capitalistas, o
scratchware seria o jogo autoral, de pequeno porte, feito por grupos
de mais ou menos três pessoas, para ser distribuído gratuitamente
ou vendido a preços acessíveis – a preço de livros de bolso,
como diz o próprio manifesto.
Vale lembrar que até
metade dos anos 90 era muito comum termos jogos comercialmente
viáveis seguindo esse modelo mais modesto, como muitos dos títulos
da Apogee, entre outros estúdios menores, extremamente populares. O
modelo 2D ainda não tinha sido superado pelo “realismo” do 3D, o
que permitia que novos jogos de pequenos estúdios pudessem ser
desenvolvidos sem uso de alta tecnologia, ainda conquistando um
público significativo – o 3D da época era ainda muito rudimentar
ou inacessível para a maioria dos desenvolvedores de menor porte. O
Manifesto Scratchware, por isso, também propõe uma espécie de
resgate dessas tradições estéticas e metodológicas tornadas
obsoletas pelos novos padrões mais robustos e estratificadores.
Uma das passagens do
Manifesto lamenta a baixa qualidade do videogame industrial, e
defende que um verdadeiro jogo scratchware deve ser livre de
bugs (ou pane/tilt/glitch – erros gráficos e funcionais que
resultam de comandos conflitantes no código do jogo, ou seja,
resultados visíveis de uma programação ruim). Pensando em termos
de videogame industrial, é coerente a exigência por uma programação
de qualidade impecável, considerando o investimento em milhões de
dólares, o alto número de empregados especializados e as muitas
horas de trabalho e vigilância investidas, sem falar no alto preço
final do jogo. Porém, o próprio Manifesto justifica a baixa
qualidade dos jogos quando denuncia as condições de trabalho
precárias dos programadores que muitas vezes chegam a dormir no chão
dos escritórios para que os prazos de lançamento dos jogos sejam
cumpridos. Ao exigir qualidade do produto que resulta desse processo,
os autores do Manifesto agem como o mais mimado consumidor de
bugigangas desnecessárias. Não gostou, faz melhor!
talvez seja uma dessas frases prontas adequadas aqui. Ou, em sintonia
com uma tendência mais recente no videogame contra-hegemônico: faz
pior!
Explicarei melhor. Estou
falando particularmente de uma comunidade online chamada GloriousTrainwrecks, fundada em 2007 e ainda funcionando. O
primeiro texto que visualizamos quando acessamos a página do grupo
deixa clara a proposta:
Glorious Trainwrecks é
jogar um monte de porcarias aleatórias no seu jogo e fazer com que a
coisa toda funcione. É trazer de volta a época em que você não se
importava tanto com "valores de produção" quanto se
importava em tirar efeitos sonoros do seu programa de televisão
favorito para usar no seu jogo, ou GIFs animados de você mesmo
fazendo caretas na webcam. Cada ideia ridícula que você tiver pode
virar um jogo, basta sentar e programar.
O nome da comunidade faz
referência ao Crash at Crush: evento publicitário de 1886,
idealizado por William George Crush, funcionário da companhia
ferroviária do Texas, com o objetivo de divulgar a empresa. A
performance consistia em provocar a colisão de dois trens vazios,
correndo em direções opostas sobre os mesmos trilhos (o que
ocasionou uma explosão inesperada e três mortes – mas isso não é
tão importante para nós agora).
Não se trata, então, de
qualquer acidente de trem. O interesse é pelo acidente provocado. A
forma do acidente como um espetáculo estético, como algo que é
desejado e planejado, um resultado plástico ambicionado por um
propositor, e não o fato do acidente descontrolado e a sua forma
como uma consequência trágica. Trata-se de uma analogia ao bug: as
duas locomotivas se chocam como ordens conflitantes de uma
programação malfeita, gerando um efeito/defeito (há diferença?)
desastroso. Ou, como dizem os glorious trainwreckers,
“terrible in a way that is awesome” (terrível de um jeito que é
incrível).
Afinal, o bug é algo
desejável ou não? A posição entre o scratchware e o
trainwreck é divergente nesse ponto: enquanto os primeiros
percebem que há, na indústria, uma tendência a lançar jogos
“bugados” e afirmam a necessidade de criar jogos “livres de
bugs” em oposição a essa tendência, os trainwreckers
aprofundam a análise e percebem que os valores do videogame
industrial não permitem, a princípio, que seus jogos sejam bugados
– sendo esse bug apenas o resultado desastroso/acidente não
planejado de uma produção hierarquizada, onde o mais alto escalão
corporativo não tem o poder de garantir a qualidade do produto
final, apenas exigir coercitivamente de seus funcionários uma
qualidade minimamente padronizada dentro de um determinado prazo. Ou
seja, o bug não é um valor positivo para a indústria, portanto não
há contrariedade em afirmar que um jogo scratchware deve ser
livre deles – sendo essa a mesma exigência dos patrões. A
existência do bug sinaliza que existe um ponto na linha de montagem
a que os mecanismos de controle não tem acesso. A potência
contra-hegemônica estaria justamente na consciência do acidente
como a “parte livre” do processo industrial. É impossível
controlar o processo totalmente, podemos apenas provocar resultados
imaginados, articular elementos. A indústria, especialmente a
cultural, insiste em promover um modelo que acredita na eficácia
desse controle total do processo, ignorando os fatores individuais de
cada pessoa envolvida nos vários estágios da produção. O bug é
parte do videogame, não precisa ser uma presença profusa, mas é um
elemento disponível para uso, com suas qualidades estéticas, e algo
que sempre estará presente no processo – mesmo que saiam daí umas
três mortes inesperadas.
Essa abertura ao bug e ao
jogo mais cru em acabamento, e também aos jogos de pequeno porte
(nesse caso uma reabertura, uma retomada de tradições tornadas
obsoletas por uma cultura da novidade), abre espaço para novos
desenvolvedores de jogos sem experiência, que não tem o domínio da
programação e dependem de programas intermediários que precarizam
o controle do criador sobre o resultado. Em meados de 2011 começa a
crescer em notoriedade um movimento queer no videogame
contra-hegemônico. “É um movimento de criadores que priorizam o
pessoal sobre o perfeito”, ressalta um artigo de Brendan Kough sobre o fenômeno. Em outras palavras: não são jogos tecnicamente
impecáveis, necessariamente – embora algumas vezes o sejam. Em
geral, são videogames que apresentam uma estética crua, com tendências minimalistas, e estruturas narrativas que escapam aos
modelos cristalizados. Muitas vezes são jogos em texto puro, e que
não se propõem como sucesso comercial em adequação à qualidade
normativa – são outros critérios de sucesso, conceito que talvez
nem esteja em jogo. Analogamente às existências dos criadores, os
videogames queer constantemente são negados pelo senso comum
do jogador médio, o homem hetero-cis-normativo (“Isso não é
videogame!” tal como “Isso não é um homem/uma mulher!”). Os
videogames queer, assim como as pessoas queer, são
objetos da atribuição de fracasso, da atribuição de
impossibilidade existencial. Como poderia a norma acolher suas
dissidências, considerando-as positivamente?
Considerar
o videogame contra-hegemônico como obras de arte é
um retrocesso: mantém invisíveis os
modelos divergentes. Se são
diferentes, não podem ser videogames, então são arte – e isso
resolve a questão. É sedutor, também,
o empoderamento resultante da cooptação de determinadas culturas e
estéticas pelo sistema da Arte, mas traiçoeiro. Com essa cooptação,
não é que os videogames em
sua totalidade passem a ser Arte – ou seja, uma
ascenção à alta cultura.
Apenas um tipo de videogame, apenas um campo limitado de
possibilidades estéticas e narrativas, consegue atravessar essa
fronteira. E esse artefato fetichizado se afasta do videogame à
medida em que penetra no campo da Arte. O videogame como Obra de Arte
é tão válido como existência quanto a travesti pornografizada:
objetos de consumo descontextualizados, adequados a uma expectativa
hegemônica sobre seus corpos e
comportamentos. Pode
ser gay, se não der pinta. Se
der pinta mas for artista,
tudo bem, cabe aos artistas
esse tipo de excentricidade
que é melhor não contrariar.
Atribuir arte
ao videogame contra-hegemônico
é não levá-lo a sério como o videogame a que se propõe ser, é
fazer o jogo do parecer
ser, é submissão aos
dispositivos de invisibilização do sistema, é
reterritorializar um modelo de existência “aberrante”,
retirando-o de seu próprio campo social dominado por regras de
comportamento às quais ele não se adequa totalmente, e colocando-o
sob o domínio da Arte, essa zona da inadequação permitida.
Colonização, simplesmente.
Este jogo é arte, mas aquele
não é, porque assim aparentam – e quanto àqueles jogos que não
soam como arte, situando-se no limbo entre o “soar videogame” e o
“soar artístico”? Inexistência, mais uma vez. Fracasso
duplo. Banheiro queer.
Uma
contracultura, ou seja, uma guerrilha ou dissidência cultural que
tenha entre suas ambições
o ataque à(s) cultura(s) dominante(s), assim como o anarquismo que
“destrói para edificar”, parecer ser a posição mais positiva
num universo de escolhas que ora pende para o fetiche do
profissional/empreendedor/quem quer ser um milionário
da indústria cultural e do
capitalismo indie, ora pende
para o refúgio confortável da Arte que protege os loucos e
degenerados do convívio com o mundo cruel da intolerância. A ninguém deve caber decidir o que é videogame, e ameaçar a paz que garante que alguns decidam deve ser um dos objetivos primeiros do videogame dissidente.
*BOURRIAUD,
Nicolas. Formas
de vida: A arte moderna e a invenção de si. São Paulo:
Martins, 2011, p. 169.
**Quando em maiúscula, me refiro à Arte como mercado de trabalho, campo de atuação profissional com sua rede de instituições - museus, galerias, universidades etc. - e suas autoridades formais - acadêmicos, ministros, diretores de museus, artistas legitimados por essa mesma máquina, curadores etc. Com arte em minúscula, me refiro a um conceito aberto de arte, não um campo com limites definidos, mas a todas as significações subjetivas e contextuais que podem ser atribuídas à arte - incluindo as maiúsculas.
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