sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

VIDEOGAME, ARTE E ACIDENTES DE TREM

Dóceis, submetemo-nos ao planejamento suave, e nosso cotidiano fica preso ao “tornar-se instituição” contra o qual podemos lutar considerando a nós mesmos como uma obra por realizar. Tarefa penosa, pois cumprida dentro de um sistema que regula nosso emprego do tempo, planeja nossos deslocamentos, canaliza nossos comportamentos. Não temos outra solução que não desviar, piratear, armadilhar a grade de programação que nos atribuem.*


Cooperative Gaming Co-op, Different Games, Oak-U-Tron, Babycastles, Punk Arcade, Pirate Kart, entre outras, são iniciativas que buscam transformar o videogame a partir de sua problematização, como alternativa crítica ou antagonismo ao videogame hegemônico. É consenso, entre os ativistas engajados no que pode se configurar como reforma ou revolução do videogame, a importância dos espaços/momentos de socialidade, a importância de fazermos uma nova leitura dos fliperamas (espaços de fruição coletiva do videogame) e adaptá-los às necessidades que hoje são evidentes. Meu interesse pelo videogame não se limita em reconhecer aí uma linguagem convidativa à sua exploração. Além disso, a dissonância presente entre o videogame e o campo da Arte** é especialmente importante.

O fliperama e o videogame (quando propositores de uma transformação) me oferecem maiores perspectivas, pois é visível a liberdade que se apresenta além dos obstáculos da hegemonia. Na Arte, a liberdade está enclausurada e normatizada – o Artista reconhecido institucionalmente é um privilegiado, pois pode gozar da suposta liberdade em absoluto conforto, como o homem rico que é livre para viver entre grades e cofres. Adequamo-nos à Arte por querermos liberdade, o que é como deixar-se prender para ter tempo de ver o tempo passar. Em meio aos mitos que sustentam as posições de privilégio e à invisibilidade daqueles que são os marginais, os Artistas podem viver sua utopia espetacular, eventualmente cooptando o que ainda há de vivo em suas margens, com a euforia própria dos colonizadores.

Morte à indústria dos jogos eletrônicos! Vida longa aos jogos eletrônicos! dizia o Manifesto Scratchware, escrito em 2000 por um grupo de críticos e desenvolvedores de jogos amadores anônimos. Talvez esteja neste manifesto o nascimento de uma consciência contra-hegemônica na cultura do videogame, coincidindo com o final de um período de transição da indústria: a obsolescência da geração dos 16 bits e a consolidação do modelo Playstation – o aspecto principal dessa transição consiste numa maior aproximação estética e narrativa do videogame com o cinema e um afastamento de suas equivalências no universo do jogo. O jogo torna-se mais “filme” e, portanto, mais real. O scratchware surge para descrever um formato de jogo (e um campo social do videogame) que resiste às tendências industriais. Em oposição aos grandes estúdios corporativos, suas complexas hierarquias e políticas capitalistas, o scratchware seria o jogo autoral, de pequeno porte, feito por grupos de mais ou menos três pessoas, para ser distribuído gratuitamente ou vendido a preços acessíveis – a preço de livros de bolso, como diz o próprio manifesto.

Vale lembrar que até metade dos anos 90 era muito comum termos jogos comercialmente viáveis seguindo esse modelo mais modesto, como muitos dos títulos da Apogee, entre outros estúdios menores, extremamente populares. O modelo 2D ainda não tinha sido superado pelo “realismo” do 3D, o que permitia que novos jogos de pequenos estúdios pudessem ser desenvolvidos sem uso de alta tecnologia, ainda conquistando um público significativo – o 3D da época era ainda muito rudimentar ou inacessível para a maioria dos desenvolvedores de menor porte. O Manifesto Scratchware, por isso, também propõe uma espécie de resgate dessas tradições estéticas e metodológicas tornadas obsoletas pelos novos padrões mais robustos e estratificadores.

Uma das passagens do Manifesto lamenta a baixa qualidade do videogame industrial, e defende que um verdadeiro jogo scratchware deve ser livre de bugs (ou pane/tilt/glitch – erros gráficos e funcionais que resultam de comandos conflitantes no código do jogo, ou seja, resultados visíveis de uma programação ruim). Pensando em termos de videogame industrial, é coerente a exigência por uma programação de qualidade impecável, considerando o investimento em milhões de dólares, o alto número de empregados especializados e as muitas horas de trabalho e vigilância investidas, sem falar no alto preço final do jogo. Porém, o próprio Manifesto justifica a baixa qualidade dos jogos quando denuncia as condições de trabalho precárias dos programadores que muitas vezes chegam a dormir no chão dos escritórios para que os prazos de lançamento dos jogos sejam cumpridos. Ao exigir qualidade do produto que resulta desse processo, os autores do Manifesto agem como o mais mimado consumidor de bugigangas desnecessárias. Não gostou, faz melhor! talvez seja uma dessas frases prontas adequadas aqui. Ou, em sintonia com uma tendência mais recente no videogame contra-hegemônico: faz pior!

Explicarei melhor. Estou falando particularmente de uma comunidade online chamada GloriousTrainwrecks, fundada em 2007 e ainda funcionando. O primeiro texto que visualizamos quando acessamos a página do grupo deixa clara a proposta:

Glorious Trainwrecks é jogar um monte de porcarias aleatórias no seu jogo e fazer com que a coisa toda funcione. É trazer de volta a época em que você não se importava tanto com "valores de produção" quanto se importava em tirar efeitos sonoros do seu programa de televisão favorito para usar no seu jogo, ou GIFs animados de você mesmo fazendo caretas na webcam. Cada ideia ridícula que você tiver pode virar um jogo, basta sentar e programar.

O nome da comunidade faz referência ao Crash at Crush: evento publicitário de 1886, idealizado por William George Crush, funcionário da companhia ferroviária do Texas, com o objetivo de divulgar a empresa. A performance consistia em provocar a colisão de dois trens vazios, correndo em direções opostas sobre os mesmos trilhos (o que ocasionou uma explosão inesperada e três mortes – mas isso não é tão importante para nós agora).

Não se trata, então, de qualquer acidente de trem. O interesse é pelo acidente provocado. A forma do acidente como um espetáculo estético, como algo que é desejado e planejado, um resultado plástico ambicionado por um propositor, e não o fato do acidente descontrolado e a sua forma como uma consequência trágica. Trata-se de uma analogia ao bug: as duas locomotivas se chocam como ordens conflitantes de uma programação malfeita, gerando um efeito/defeito (há diferença?) desastroso. Ou, como dizem os glorious trainwreckers, “terrible in a way that is awesome” (terrível de um jeito que é incrível).

Afinal, o bug é algo desejável ou não? A posição entre o scratchware e o trainwreck é divergente nesse ponto: enquanto os primeiros percebem que há, na indústria, uma tendência a lançar jogos “bugados” e afirmam a necessidade de criar jogos “livres de bugs” em oposição a essa tendência, os trainwreckers aprofundam a análise e percebem que os valores do videogame industrial não permitem, a princípio, que seus jogos sejam bugados – sendo esse bug apenas o resultado desastroso/acidente não planejado de uma produção hierarquizada, onde o mais alto escalão corporativo não tem o poder de garantir a qualidade do produto final, apenas exigir coercitivamente de seus funcionários uma qualidade minimamente padronizada dentro de um determinado prazo. Ou seja, o bug não é um valor positivo para a indústria, portanto não há contrariedade em afirmar que um jogo scratchware deve ser livre deles – sendo essa a mesma exigência dos patrões. A existência do bug sinaliza que existe um ponto na linha de montagem a que os mecanismos de controle não tem acesso. A potência contra-hegemônica estaria justamente na consciência do acidente como a “parte livre” do processo industrial. É impossível controlar o processo totalmente, podemos apenas provocar resultados imaginados, articular elementos. A indústria, especialmente a cultural, insiste em promover um modelo que acredita na eficácia desse controle total do processo, ignorando os fatores individuais de cada pessoa envolvida nos vários estágios da produção. O bug é parte do videogame, não precisa ser uma presença profusa, mas é um elemento disponível para uso, com suas qualidades estéticas, e algo que sempre estará presente no processo – mesmo que saiam daí umas três mortes inesperadas.

Essa abertura ao bug e ao jogo mais cru em acabamento, e também aos jogos de pequeno porte (nesse caso uma reabertura, uma retomada de tradições tornadas obsoletas por uma cultura da novidade), abre espaço para novos desenvolvedores de jogos sem experiência, que não tem o domínio da programação e dependem de programas intermediários que precarizam o controle do criador sobre o resultado. Em meados de 2011 começa a crescer em notoriedade um movimento queer no videogame contra-hegemônico. “É um movimento de criadores que priorizam o pessoal sobre o perfeito”, ressalta um artigo de Brendan Kough sobre o fenômeno. Em outras palavras: não são jogos tecnicamente impecáveis, necessariamente – embora algumas vezes o sejam. Em geral, são videogames que apresentam uma estética crua, com tendências minimalistas, e estruturas narrativas que escapam aos modelos cristalizados. Muitas vezes são jogos em texto puro, e que não se propõem como sucesso comercial em adequação à qualidade normativa – são outros critérios de sucesso, conceito que talvez nem esteja em jogo. Analogamente às existências dos criadores, os videogames queer constantemente são negados pelo senso comum do jogador médio, o homem hetero-cis-normativo (“Isso não é videogame!” tal como “Isso não é um homem/uma mulher!”). Os videogames queer, assim como as pessoas queer, são objetos da atribuição de fracasso, da atribuição de impossibilidade existencial. Como poderia a norma acolher suas dissidências, considerando-as positivamente?

Considerar o videogame contra-hegemônico como obras de arte é um retrocesso: mantém invisíveis os modelos divergentes. Se são diferentes, não podem ser videogames, então são arte – e isso resolve a questão. É sedutor, também, o empoderamento resultante da cooptação de determinadas culturas e estéticas pelo sistema da Arte, mas traiçoeiro. Com essa cooptação, não é que os videogames em sua totalidade passem a ser Arte – ou seja, uma ascenção à alta cultura. Apenas um tipo de videogame, apenas um campo limitado de possibilidades estéticas e narrativas, consegue atravessar essa fronteira. E esse artefato fetichizado se afasta do videogame à medida em que penetra no campo da Arte. O videogame como Obra de Arte é tão válido como existência quanto a travesti pornografizada: objetos de consumo descontextualizados, adequados a uma expectativa hegemônica sobre seus corpos e comportamentos. Pode ser gay, se não der pinta. Se der pinta mas for artista, tudo bem, cabe aos artistas esse tipo de excentricidade que é melhor não contrariar. Atribuir arte ao videogame contra-hegemônico é não levá-lo a sério como o videogame a que se propõe ser, é fazer o jogo do parecer ser, é submissão aos dispositivos de invisibilização do sistema, é reterritorializar um modelo de existência “aberrante”, retirando-o de seu próprio campo social dominado por regras de comportamento às quais ele não se adequa totalmente, e colocando-o sob o domínio da Arte, essa zona da inadequação permitida. Colonização, simplesmente. Este jogo é arte, mas aquele não é, porque assim aparentam – e quanto àqueles jogos que não soam como arte, situando-se no limbo entre o “soar videogame” e o “soar artístico”? Inexistência, mais uma vez. Fracasso duplo. Banheiro queer.

Uma contracultura, ou seja, uma guerrilha ou dissidência cultural que tenha entre suas ambições o ataque à(s) cultura(s) dominante(s), assim como o anarquismo que “destrói para edificar”, parecer ser a posição mais positiva num universo de escolhas que ora pende para o fetiche do profissional/empreendedor/quem quer ser um milionário da indústria cultural e do capitalismo indie, ora pende para o refúgio confortável da Arte que protege os loucos e degenerados do convívio com o mundo cruel da intolerância. A ninguém deve caber decidir o que é videogame, e ameaçar a paz que garante que alguns decidam deve ser um dos objetivos primeiros do videogame dissidente.


*BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: A arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins, 2011, p. 169.

**Quando em maiúscula, me refiro à Arte como mercado de trabalho, campo de atuação profissional com sua rede de instituições - museus, galerias, universidades etc. - e suas autoridades formais - acadêmicos, ministros, diretores de museus, artistas legitimados por essa mesma máquina, curadores etc. Com arte em minúscula, me refiro a um conceito aberto de arte, não um campo com limites definidos, mas a todas as significações subjetivas e contextuais que podem ser atribuídas à arte - incluindo as maiúsculas.

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