Essa semana eu tomei conhecimento de uma cena independente no videogame nacional. É que uma amiga me mostrou uma matéria muito interessante que comentava a efervescência de uma cena de mods de GTA - se trata do GTA Torcidas, que aproveita a estrutura do GTA San Andreas pra dar corpo a uma espécie de simulador de confrontos entre torcidas organizadas de futebol. E acontece que é exatamente o tipo de coisa que eu procurava para fundamentar melhor minhas críticas aos jogos MMO (Massive Multiplayer Online) e às reações negativas a determinados usos desses jogos - o que a gente pode chamar de fenômeno "hue".
Minha posição é a seguinte: os jogadores que "não sabem se comportar num MMO" não são algo negativo, mas negativa é a postura majoritária dos jogadores que é construída sobre um entendimento limitado das regras do jogo. Sim, estou dizendo que acho massa aquela galera que zoa o jogo todo e acho tosco quem reclama (e inadmissível quem usa de racismo e xenofobia pra reclamar).
Antes de mais nada: o que define um MMO? Quais são suas peculiaridades, as características que diferem esse modelo de jogo de outros? As coisas mais básicas são o "massivo" e o "online" da sigla - ou seja, um monte de gente jogando online ao mesmo tempo, na mesma partida - mas acho que a nossa leitura pode ir um pouco mais longe. Incrementar qualquer jogo com essas duas variáveis não vai simplesmente "melhorar" um jogo offline e singleplayer, mas modificar profundamente suas regras. Quem acompanhou o TwitchPlaysPokémon conhece bem o efeito de que estou falando. Pra quem nunca ouviu falar: se trata de um canal de streaming com uma rom modificada de Pokémon que permite que os comentários enviados para a página do vídeo sejam interpretados como comandos no jogo. Imagine 300 pessoas apertando todos os botões do seu Game Boy. Pois é. O que acontece é uma total perda de controle da situação. O jogador individual não domina totalmente as ações do seu avatar e muito menos as consequências de suas interações com o universo do jogo.
Claro que há algumas diferenças entre o Pokemon hackeado para se transformar em MMO e um MMO tradicional projetado para ser um MMO. Mas o aspecto que quero frisar aqui está no que existe em comum entre os dois: para que o jogo flua sem obstruções e desvios é preciso que haja uma cooperação perfeita entre as centenas de jogadores envolvidos na partida. E essa cooperação perfeita é simplesmente impossível de ser conquistada na totalidade das partidas, em algum momento haverá um elemento desviante, ou que tenha concepções divergentes a respeito dos objetivos do jogo. Porém, o TPPokémon opta por uma solução que é incomum para o MMO tradicional: acolhe os desvios como parte da experiência. E o que é mais curioso: o jogo se mantém sendo jogado por centenas de pessoas, se tornando cada vez mais caótico. Provavelmente todos ali estão lidando com a frustração permanente de serem afastados de seus objetivos a cada novo comando conflitante que é enviado (com exceção dos que estão ali com o objetivo de atrapalhar o progresso - e que também são jogadores legitimamente comprometidos com a experiência).
O que acontece é que no MMO tradicional o desvio tem uma presença mais sutil, podendo mesmo nem surgir em vários momentos. Por isso sua presença, quando percebida, é tão negativizada. Ninguém está preparado para lidar com ele. Mas ele está ali porque a estrutura do jogo permite, as regras (ou suas omissões) permitem. No TPPokémon, por necessitar de uma cooperação muito mais sincronizada, torna desviante todas as mínimas dissonâncias - a mais insignificante tomada de decisão no modo singleplayer (como andar uma casa para a esquerda) é um desvio para outros 200 jogadores que gostariam de tomar a direção contrária. Quando temos um sistema que necessita de tal nível de homogeneidade comportamental para ser atravessado, praticamente tudo se torna desvio. Quando essa homogeneidade é exigida em menor grau, como por exemplo num Ragnarok da vida, o desvio se torna mais raro e o consenso é mais fácil de ser conquistado. Quando não há consenso, a tendência é que a postura contra-hegemônica seja eliminada, anulada, caracterizada como força inimiga para que prevaleça o modo hegemônico de interagir com o sistema do jogo. Obviamente a presença do comportamento desviante torna a experiência de jogo frustrante para o jogador médio, que não consegue reorganizar seus hábitos para acolher o desvio como parte do jogo. Talvez o jogo não ofereça muitas saídas, e aí podemos pensar: será que esse jogo está sendo projetado da melhor maneira? Em outras palavras: os game designers são realmente bons e sabem o que estão fazendo? O que percebo no MMO tradicional é uma tendência fascistizante que nega o acolhimento a outros repertórios de jogo, outros modos de envolvimento com o sistema do jogo, buscando maneiras de policiar e eliminar os desvios, amarrando-os no poste.
É bom lembrar que a maior parte desses jogos se baseia num sistema de acumulação e destruição - sim, parecido com o capitalismo do mundo real. Mate o maior número de inimigos para acumular pontos que te tornarão mais forte para que você seja capaz de matar inimigos ainda mais fortes e assim sucessivamente. É claro que algumas pessoas buscarão atalhos para vencer esse sistema de maneira mais imediata, objetivando a recompensa por ter atravessado a experiência sem ter realmente a atravessado. Os desviantes criam uma nova experiência baseada no prazer de sabotar a narrativa padrão. Essa sabotagem, afinal, não é uma maneira de interagir com o sistema? Não é uma maneira de jogar? As omissões do sistema de regras não permitem que esses comportamentos sejam possíveis?
Aqui voltamos ao GTA Torcidas: toda uma cena (que já acumula alguns anos de história, diga-se de passagem) povoada por usuários e produtores de conteúdo imersos num repertório de jogo que, quando presente em MMOs tradicionais, dá corpo ao fenômeno hue - algo a ser combatido pelos jogadores médios. Vale lembrar a situação criada em HU3 Attack, jogo que eu considero uma síntese emblemática do "medo da presença de maloqueiros" que povoa o imaginário gamer (aqui eu uso "gamer" como grupo identitário, não como "jogadores"). Quem são esses "maloqueiros", senão a juventude negra periférica carregando seu repertório cultural (funk, torcidas organizadas, hip hop etc.)? É claro que não podemos saber quem são, de fato, as pessoas conectadas num servidor de Ragnarok ou GTA Torcidas - mas não creio que isso seja tão importante, pois o "devir maloqueiro" que se manifesta no jogo é tão real quanto a resposta negativa à sua presença.
Desde o orkut, os efeitos da inclusão digital tem se feito sentir. Se no videogame e, de maneira mais gritante, nos MMOs essa crescente presença do repertório desviante tem apavorado os jogadores médios, onde estará o problema? Na inclusão ou na incapacidade do sistema em acolher esses usuários? O GTA Torcidas está à margem do videogame, alheio ao indie, mas é tão videogame e independente quanto qualquer devaneio nerd com seus inabaláveis castelos e princesas. O videogame está sendo orkutizado e nós deveríamos desejar que isso aconteça. Talvez devêssemos abandonar o MMO tradicional, pensar em algo melhor, fazer algo melhor, que não esteja obsoleto, que não seja tão bobo. Esse acolhimento não precisa e nem deve ser acrítico, e eu estarei satisfeito quando houver um debate aberto e horizontal entre as diversas maneiras de se construir uma cultura do videogame menos elitizante, sem xenofobia, sem racismo e sem classismo. É preciso superarmos essa discussão sobre qual seria a maneira correta de jogar e a que restrições devem ser submetidos os desviantes. Não podemos controlar as outras pessoas, não podemos escondê-las, e se as matarmos outras nascerão. Essas não são soluções, mas manifestações do medo de uma classe dominante que se percebe ameaçada pela inserção de modos de existência marginais no seu meio. Talvez o sistema esteja construído sobre equívocos - seja esse sistema o jogo ou a sociedade além do jogo.
mto bom. eu pessoalmente fiquei com a maior vontade de jogar o gta torcidas.
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