Tenho percebido um interesse crescente sobre a identidade gamer - seus efeitos na cultura e no consumo de videogame - e achei que faria bem em escrever de novo sobre o assunto. Antes da gente começar, não deixem de ler meu texto anterior, o texto da Beatriz Blanco que levanta outras questões bem importantes dentro do tema e, por último, o texto do Pedro Falcão que, embora sugira uma abordagem contundente no título, parece se distanciar disso no desenvolvimento.
Terminei o outro texto dizendo que "o videogame só será das pessoas quando os gamers estiverem mortos e enterrados, quando não existir mais o videogame de verdade". Que videogame será esse que pertence às pessoas? Cabe definirmos ou é uma pergunta impossível? Talvez a solução não esteja na resposta, mas nas mais apaixonadas tentativas de responder. Quanto ao videogame de verdade, acho que é bem fácil de definir. Você sabe: Nintendo, Sega, Playstation, Xbox, Steam, Final Fantasy, Hideo Kojima, First Person Shooters, League of Legends, World of Warcraft, GTA, Candy Crush... sim, eu disse Candy Crush.
Normalmente, os gamers (aquelas pessoas que se sentem absolutamente acolhidas pela indústria do videogame e atendidas em suas expectativas de consumo, identificando-se com essa identidade) sentem vergonha de admitir que jogam "casual games", que é como nos acostumamos a chamar aqueles jogos que são produzidos para o consumo das pessoas que não comprariam um Xbox, não saberiam instalar o Nintendo Wii, não sabem o que é E3, acham que Polystation e Playstation são a mesma coisa, jamais tatuariam uma triforce, e não leriam essas páginas de jabá de videogame mainstream que chamamos de "jornalismo gamer". Os ditos casual games são os jogos dos não-gamers. Não é vendido como se fosse videogame de verdade, mas vendido como um passatempo cujas qualidades estéticas estão a serviço de um mecanismo viciante que envolve a sensação de progresso contínuo e recompensa constante. Quando defendemos que a identidade gamer é questionável usando como argumento o fato de que é crescente o número de "casual gamers", ou seja, jogadores de videogames que não são, assim, "videogames de verdaaaade", encontramos a reação do "hardcore gamer" que pode simplesmente rejeitar esse dado e continuar afirmando a irrelevância do casual game. Não é por nada que são amplamente consumidos, são sucessos comerciais projetados pra fácil digestão e amparados por um enorme aparato publicitário. O primeiro passo que devemos dar é reconhecer que o casual game também é "o videogame de verdade", e que essa divisão hardcore/casual é simplesmente uma divisão de nichos dentro de uma indústria de videogame mais ampla. Ainda é o mainstream. O "casual gamer" ou simplesmente "gamer", sinônimo de consumidor de videogame, reduzindo o jogador a esse papel passivo, ainda está presente. Queremos que todo mundo jogue videogame o tempo todo para sempre ou algo assim? Que função exerce o "casual game"?
Candy Crush é o jogo preferido dos monitores da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul, pra onde eu vou quando não estou fazendo jogos e escrevendo sobre eles. Parte do trabalho deles envolve ficar horas e horas (estou falando de muito tempo) sentados em algum balcão ou cadeira, supostamente vigiando os rapazes e moças que estão presos ali cumprindo suas medidas supostamente sócio-educativas. Não é um trabalho que envolva grandes sensações de progresso e recompensa, como vocês devem imaginar. Principalmente porque parte dos rapazes e moças tem o hábito de morrer ou de retornar à instituição mesmo depois de passar por uma ou duas medidas - não é lá o que podemos chamar de um tremendo êxito em sócio-educação (que consiste, basicamente, em garantir que a gurizada largue o crime e vire "gente de bem").
Estou usando essa digressão pra fazer um comentário um tanto perverso: talvez fosse insuportável para esses monitores, se não houvesse o Candy Crush, perceber o quão infrutífero é o trabalho que fazem. Talvez tivesse mais peso o ar que não circula dentro das unidades, se não houvesse a tela exibindo agradáveis gatilhos de satisfação, peças explodindo em estrelinhas coloridas e números somando-se ao irresistível acúmulo no canto da tela. Aos que vão trabalhar todo dia (e muitos não aguentam, acabam faltando, mesmo que isso custe parte do salário), o Candy Crush ajuda a manter as pálpebras abertas e o olhar iluminado - numa espécie de hipnose, mas iluminado por algo menos opaco que os desgastes das grades, obstruindo a busca por uma luz mais plena de sentido. É claro que "cada vez mais pessoas jogam videogame", mas isso não é uma coisa feliz e bonitinha, como dizem os gráficos de vendas do último International Fucking Business Games Conference ou coisa que o valha. Em que contexto as pessoas jogam videogame? Por que jogam? Simplesmente porque venderam barato suas vidas e precisam recuperar o espírito - ou algo que se aproxime disso - de alguma maneira. E consumir, na sociedade capitalista, é mais urgente do que viver.
Os gamers, aqueles que se identificam com o que a Beatriz compara com um "fandom" dos videogames, geralmente tem à sua disposição tempo e dinheiro para investir no consumo ávido de produtos e informações especializadas. Geralmente estão distantes do trabalhador mais alienado, são estudantes ou "trabalham com o que amam", eventualmente aprendendo a amar coisas como publicidade e propaganda. Insisto em frisar que estou fazendo generalizações com base na realidade que observo cotidianamente, e que exceções confirmam a regra que é a situação majoritária. O que quero dizer é que há um recorte de classe que pesa bastante na diferenciação entre gamers e não-gamers, ou casual gamers (incluindo aqui os "casual gamers em potencial") e hardcore gamers, se preferirem. A democratização do videogame nesse sentido, ampliando o alcance do "videogame passatempo", oferecendo como um bônus a dádiva de ser contemplado pela alcunha de gamer, é uma proposta conservadora que inclusive intensifica o processo nocivo que tentei salientar no meu primeiro texto. Não quero que todos sejam gamers - e não sei como isso poderia contribuir com qualquer "morte" dos gamers - mesmo considerando uma morte metafórica. A "idéia engessada do que é um gamer" não existe, porque "gamer" já é a própria idéia engessada, não há para onde ampliá-la sem ampliar, com ela, o gesso.
Repensar o "gamer" não é ampliar o alcance da indústria do videogame - e sinto que estamos nos aproximando perigosamente de propor isso. Não me adianta nada que o Domingão do Faustão seja democrático porque está presente nas casas de todo brasileiro, seja rico seja pobre, não é dessa concepção de democracia que estamos falando. Não se iludam: o casual game é apenas um dos braços do tal "videogame de verdade", e não é algo para lutarmos em defesa. O trabalho alienado será mais fofo com casual games para todos, nos dando a impressão de que houve alguma espécie de revolução em que todos foram beneficiados por uma inserção cultural. Não é isso. A inserção aqui é mercadológica, expansão da base de consumidores, e não oferece qualquer ameaça à indústria cultural, tampouco à formação de elites gamers, sendo essas ainda privilegiadas por questões de classe, gênero, raça, idade etc. O videogame democrático de uma perspectiva radical é aquele que ainda não foi feito, aquele que a drag queen - não "a do meu prédio", mas minha amiga, amante, heroína ou performer favorita - pode fazer, se quiser. Aquele que eu posso escolher não fazer, porque prefiro fazer bordado e que se fodam os videogames. Aquele que o antigo menor infrator pirateia e vende na frente do supermercado, mesmo que seja do Playstation. O excitante nos videogames não é o fato de serem videogames, de serem "videogame de verdade", "hardcore games", ou "casual games", mas o fato de que poderiam ser qualquer outra coisa no mundo, e mesmo assim são videogames. Se alguém precisa morrer, talvez seja esse pequeno Faustão que habita nossas concepções de democracia e inclusividade.
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