domingo, 9 de novembro de 2014

SOBRE A EXPECTATIVA


Não são apenas os jogos que são fabricados pela indústria do videogame (ou qualquer produto sob o regime industrial de produção), mas também as expectativas sobre eles. Já falei sobre isso em outros textos - talvez em todos eles - mas acho que é importante conceituarmos a expectativa mais assertivamente, pra que ela tome um corpo localizável que poderemos transformar com maior facilidade.

A expectativa não é necessariamente um inimigo: temos expectativas sobre todas as coisas, esperamos que o mundo seja minimamente previsível, gostamos de adivinhar como as coisas acontecerão, gostamos de dar conselhos ou criar teorias com base  nisso. Esperamos que as coisas sejam como já conhecemos, ou que pelo menos obedeçam as teorias e profecias que já lemos e escrevemos. Mas embora a expectativa sempre trate de coisas que serão e virão, ela é essencialmente um produto do passado. Apenas observando as coisas como foram e como estão agora é que somos capazes de vislumbrar o futuro - é assim que os grandes da ficção científica constroem seus universos ficcionais: através da observação atenta do presente e não através de bolas de cristal - não que estas não possam ser um acessório bem-vindo.

É no subproduto da expectativa que começamos a encontrar os problemas: a decepção. Nos decepcionamos com determinadas pessoas que nos prometem uma coisa mas não fazem, nos decepcionamos com aquela festa que não foi tão legal quanto pensávamos, nos decepcionamos com uma refeição que parecia uma delícia mas não era... sempre que a expectativa é quebrada pelo desenrolar da realidade acontece a decepção. Sempre que nossas projeções de futuro baseadas na observação do passado são desmentidas pelos fatos. A decepção em si não é sempre um problema, entretanto. Basta aprendermos a viver com sua ocasional presença - mas jamais viver em função dela. Não podemos temer a decepção desmedidamente.

O que tudo isso tem a ver com a indústria do videogame? Ora, a qualidade de um produto comercial atende a determinados critérios - sejam eles definidos pela produtora, pela direção, pela distribuidora, pelos consumidores... se quisermos ser dignos de investimento enquanto empresa do ramo do entretenimento, é crucial que saibamos corresponder às expectativas do mercado e seus agentes. A questão é que pessoas não são empresas, mas querem produzir tal qual empresas e se decepcionam com a impossibilidade de concretizar essa expectativa. Isso porque, antes de serem produtoras de conteúdo, elas são consumidoras: acostumaram-se a ver nas prateleiras apenas aquilo que o mercado considera legítimo, e acreditam - talvez nem sempre conscientemente - que apenas atingindo ou superando aquele padrão de qualidade elas podem ser relevantes, legítimas ou reais. O que não puder ser massivamente consumido pelo mesmo público do produto industrial não é real, não é "videogame de verdade", é um fracasso. Se esquecem de que os meios de produção disponíveis para a indústria são radicalmente diferentes daqueles disponíveis para o amador solitário. Dos mais significativos: tecnologia de ponta, de hardware a software, e funcionários formados com especialização de anos em funções específicas. E tem algo que empresas não possuem: outras coisas pra fazer.

Uma das teses do Manifesto Canibal da qual eu gosto muito fala que "qualidade é coisa de gente reprimida". E não é? Que raios é qualidade, afinal? Quem inventou isso? Qualidade é apenas a resposta imediata à expectativa hegemônica, aquela força que nasce da comunicação humana e que se torna um monstro sob o regime da cultura de massa, sob a onipresença da grande mídia e do grande empresariado cultural. Somos reprimidos pela expectativa, como se tivéssemos uma pequena tropa de choque dentro de nossas mentes, prontas para agir em nome da lei e da ordem, tomando as atitudes cabíveis para com todas aquelas manifestações dissonantes da obediência geral.

POR QUE É IMPORTANTE TERMOS EXPECTATIVAS MODESTAS?

É preciso que sejamos capazes de reconstruir conscientemente nossas expectativas, escolher novos critérios que sejam coerentes com nossas possibilidades, que combinem com os meios de produção que temos ao nosso alcance. Sim, estou sugerindo que seja crucial desistirmos dos nossos projetos mais ambiciosos, deixarmos de trabalhar neles, substituindo-os por projetos modestos ou cortando-os/adaptando-os até que se tornem irreconhecíveis - mas realizáveis. Se existe uma perspectiva tóxica para o processo criativo, é a de ver o nosso trabalho como uma obra-prima em andamento.

A obra-prima é o trabalho mais significativo/peculiar/monumental na obra mais ampla de qualquer autor. É lógico: nem toda realização de um autor, por maior que seja seu "talento" ou a visibilidade que ele tem, será uma obra-prima. Isso é impossível. Cineastas fazem curtas, escritores fazem contos, músicos fazem demos. E uma obra-prima só se torna uma obra-prima porque o público, aqueles que a fruem, a significam como tal - não é o autor que faz uma obra ser uma obra-prima, é algo que está além de seus poderes. Então por que queremos que cada projeto nosso seja algo sem precedentes ou aquilo que irá nos fazer alçar os vôos mais altos imagináveis? É bem provável que, com essa expectativa nos devorando como urubus devoram a carniça, nos afoguemos num ciclo que consiste no seguinte: engajamento inicial na produção da obra-prima; euforia e planejamento excessivamente detalhista de todos os mínimos aspectos do jogo; protelamento do trabalho mais concreto que pode envolver a criação dos gráficos, a programação do jogo, a sonorização, etc.; percepção de que o trabalho será um martírio incalculável; desencantamento com o projeto e provável período depressivo; invenção de justificativas fantasiosas para o abandono do projeto/responsabilização de terceiros; engajamento inicial em outra obra-prima que jamais será realizada.

Vocês já leram Christine, do Stephen King? Sim, aquele mesmo do carro assassino. Não vale o filme, que é muito diferente; estou falando do livro. Arnie Cunningham, o protagonista, tem uma relação doentia com o seu carro que se assemelha bastante ao fenômeno que estou tentando descrever. Ele inclusive abandona outras responsabilidades e relacionamentos (empresas fazem jogos, pessoas fazem muitas coisas além de jogos - lembram?) sem pensar nas necessidades concretas de sua vida, se deixando levar por uma obsessão em restaurar o carro - uma tarefa que, desde o começo da história, se mostra muito além de suas possibilidades. Ele observa o progresso da restauração sem se permitir admitir que não é fruto do seu trabalho (na verdade ele não fez quase nada no carro), mas de poderes sobrenaturais da própria Christine, essa entidade autônoma, que se restaura sozinha todas as noites - uma ilusão de progresso que está presente no excessivo planejamento de que estávamos falando. Num determinado momento, porém, ele percebe que Christine o está consumindo muito mais do que ele a consome, mas é tarde demais.

Não sejam como Arnie e observem atentamente o momento presente e as ferramentas disponíveis, sem se deixar consumir por um projeto megalomaníaco. O que pode ser feito hoje? Consigo criar um jogo hoje, começando e terminando? Faça com que seja possível e tente. O que pode ser feito em uma semana? Tente. Mesmo que não fique tão legal. Mesmo que fique uma bosta. Talvez o elemento equivocado seja a expectativa projetada sobre o produto do trabalho, não o produto do trabalho. Essa expectativa pode ser trabalhada assim como um jogo ou um pedaço de argila. Transforme-a até que se adeque à realidade do seu trabalho. Faça pequeno e pense pequeno, comemore pequenos sucessos (minha irmã mais nova gostou), procure a beleza nas estéticas mais brutas e ingênuas e aprenda a apreciá-las. Soa como auto-ajuda? Talvez seja, mesmo. Pode até repetir essas coisas no espelho, se quiser. Não vai ter ninguém olhando.

Se aceitam uma sugestão ainda mais atrevida: não sejam artistas, não se vejam como artistas, não tenham a ambição de, um dia (talvez depois de mortos), serem reconhecidos como artistas. Isso é irrelevante para o processo de trabalho e será apenas mais um elemento de decepção. Façam o que tem que ser feito e não procurem se adequar a uma expectativa sobre como deve soar uma obra de arte - façam o maldito joguinho, apenas. Preocupem-se em como será a experiência de jogo que ele proporciona, e articulem a partir disso o repertório disponível. Em outros textos, eu falo com um pouco mais de profundidade sobre o problema do videogame como arte (estou falando dos textos "o videogame contra a arte" e "videogame, arte e acidentes de trem").

EXPERIMENTALISMO E PICARETAGEM

Certo, mas e como fica nossa auto-estima? É vital que estejamos empoderados enquanto autores, e apenas "fazer pequeno" não parece muito estimulante. É debilitante trabalhar numa tarefa que não possui nada de mágico, nada de extraordinário, nada de belo - seja ela qual for. Não basta realizarmos, apenas. Precisamos trabalhar como um ritual e publicar como um nascimento - é aí que encontraremos a realização do trabalho realizado. Mas tanto ritual quanto nascimento devem ser concretos, devem acontecer! Como construir um ritual que possibilite o nascimento do jogo?

Antes de mais nada, certifique-se de que o que você quer fazer são videogames. Seja honesto: você não prefere culinária ou cicloativismo? Tem certeza? Já viu isso aqui? Ou isso? Se estiver certo sobre o videogame, podemos prosseguir.

Construir um novo processo de trabalho é estranho no começo, você vai se mover com cuidado redobrado, mais ou menos quando começa a se afetar sexualmente com uma nova pessoa, e deve ir descobrindo de que carícias ela gosta, de que tipo de aproximações, e aos poucos vai vendo surgir a intimidade. É como experimentar. Imagine-se como um cientista maluco, alguém misturando produtos químicos coloridos que podem explodir a qualquer momento, um Doutor Frankenstein eletrificando um mosaico de corpos mortos na certeza de que disso resultará um nascimento. Imagine-se como um feiticeiro, alguém pronunciando encantamentos para proteger a caminhada por uma trilha numa floresta antiga. Proponha um devir para você mesmo, mergulhe nele de cabeça e faça dessa exploração - muito longe das antigas certezas, dos antigos critérios de qualidade, das velhas e decrépitas expectativas - uma viagem de dois dias que te levará a um final no topo das montanhas ou no fundo de um baú. Esse final será seu jogo pronto - Um monstro? Um robô? Um pote de ouro? Um super-poder? Seja um experimentalista, alguém que se perde entre becos e árvores, encontrando as coisas ao acaso pelo caminho - e fazendo do que encontra acidentalmente aquilo que estava procurando.

Seja um picareta! Faça um jogo com gráficos roubados, coloque alguns sprites do Mario para protagonizar sua aventura, mas não precisa colocar aquela coisa toda dos cogumelos e flores flamejantes: conte uma história sobre o pesadelo que teve na noite passada, aquele em que você caía sem parar num buraco negro e sem fundo. O Mario não é o Mario, agora ele é você, como em brincadeiras de faz de conta. Ele não está parado sobre um fundo preto, mas caindo num buraco negro - você pode escrever isso, se não tiver ficado suficientemente claro. Pode ser o título do jogo: Na Noite Passada Sonhei que Caía. Agora publique assim, como está! Publique, antes que se arrependa! Faça mais dois, uma trilogia! Não precisa ser interativo - é você quem diz se é ou não é videogame. Não precisa ter pontos, nem finais (muito menos múltiplos finais), nem vencedores e perdedores. Também não precisa ser bonito, nem feio, nem coisa nenhuma. Faça um jogo que se chama "Quadrado Preto Sobre Fundo Branco" e então coloque uma paisagem sonora bem massa. É só baixar um wav de alguma banda dark ambient com aqueles programas que fazem download de áudio do Youtube. Ou não coloque porcaria de som nenhum. Chame o jogo de "Minha Vó" e digitalize um retrato dela. Clicando sobre a foto, tocam diferentes faixas do disco do Roberto Carlos que ela tanto gostava. Escreva um poema e faça com que as palavras atirem raios laser em discos voadores que se aproximam de todos os lados. Tire uma selfie e coloque sua cabeça recortada protagonizando um jogo de nave. Faça cinco jogos iguais, coloque títulos diferentes e diga que fez cinco jogos diferentes. Divirta-se! Subverta a preguiça! Corte o irrealizável em pedacinhos que possa carregar num colar junto a cabeças de alho e outros talismãs pessoais. Use elementos de seu repertório como se eles fossem patas de aranha e dentes de morcego misturados num caldeirão de gelo seco cenográfico - isso será bom como a poção de Panoramix, pode apostar. Estou falando sério! Mas você precisa se comprometer. Tem que desejar essa viagem (essa viagem curta, de duas horas ou dois dias, mas intensa e perigosa) - não só um resultado inatingível, algo que nunca acontecerá daqui a dez anos, que dependerá de um sacrifício que você nunca estará disposto a sofrer. E não se esqueça de que amanhã precisa acordar cedo e tomar um banho - é segunda-feira.

Olhei para Christine - apenas aquilo que deixara de ser Christine. Era um monte disperso de metal partido e torcido, pedaços de recheio do estofamento e cintilante vidro quebrado.

8 comentários:

  1. "Não precisa ser interativo - é você quem diz se é ou não é videogame."

    Sai das drogas, Pedro.

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  2. Eu nem uso drogas recreativas. Mas de repente é uma boa sugestão pra quem curte, incluir no processo/ritual de trabalho.

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  3. "Eu nem uso drogas recreativas"

    Tu usa o que então, drogas legalizadas? Fala sério, como alguém consegue ir disso:
    http://i.imgur.com/FjBaWPY.gif
    pra isso:
    http://i.imgur.com/bTqR401.png
    e ainda dizer que não fuma um ?!

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  4. Melhor salvar um print da tua resposta, assim quando isso ficar muito mainstream é só começar a tirar fotos de papel sujo de merda pra postar como "game", e se perguntarem é só colar a imagem.

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  5. Nossa, cara, você precisa arrumar um hobby.

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  6. Por quê? Quer que eu vá expressar minha opinião bem longe de onde você frequenta ou que pelo menos então "dê uma branqueadinha" antes de escrever o que penso?

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