"Você está entrando no mundo da informação, auto-conhecimento, denúncia e diversão. Esse é o Raio X do Brasil. Seja bem-vindo." Os Racionais MC's nos dão as boas-vindas a esse disco ao mesmo tempo em que afirmam que ali há um compromisso com a realidade. Em seguida começa a tocar Fim-de-semana no Parque e Mano Brown segue falando sobre diversão no embalo de uma batida cortante: "Chegou fim-de-semana, todos querem diversão. Só alegria, nós estamos no verão..."
A letra explica: a diversão não é sempre a mesma coisa e o acesso não é universal: os recortes de raça e classe determinam as diferenças entre a diversão daqui e a diversão de lá. Falar sobre diversão também é falar sobre exclusão, ressentimento, orgulho, autodeterminação e uma série de coisas que deixam de fazer sentido se a gente não considera tudo junto, numa mesma combinação. O RAP sem o mundo não é tão divertido. Por que seria diferente com o videogame? Por que os gamers se revoltam quando algum elemento identificado como "progressista", "inclusivo" ou "do mundo lá fora" aparece no seu videogame mainstream tão adorado?
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Opinião gamer sobre The Last of Us Part II |
O gamer parte da falsa compreensão do videogame como um campo neutro, em que normalmente ocorrem ficções neutras, que não tratam de temas políticos ou "do mundo". O gamer é capaz de ignorar que há uma relação com a realidade em coisas como, por exemplo, Resident Evil 4 - uma fantasia de violência feita sob medida para o público estadunidense, em que você encarna um policial branco e gringo invadindo casas de camponeses hispanófonos e matando-os a tiros, tudo isso sob o pretexto de uma emergência sanitária. Nada a ver com o mundo lá fora, né?
Escolho Resident Evil 4 porque foi um dos títulos mais recentes que joguei do mainstream - meu acesso ao videogame de ponta só acontece com um atraso de dez anos ou mais. Sou pobre e já fui mais jovem. Posso falar de coisas anteriores: Jungle Strike é uma propaganda da guerra às drogas e toda a série Strike é uma defesa das investidas estadunidenses contra a soberania de países na periferia do capitalismo, Final Fight é um elogio à aliança entre políticos fascistas e milícias paramilitares - o sequestro da filha do prefeito serve pra estabelecer a política como um assunto pessoal do líder ameaçado na sua intimidade - Total Carnage é uma exaltação ultraviolenta do ufanismo estadunidense, e por aí vai. Todos esses jogos não se destacam por "contaminar o videogame com assuntos do mundo", mesmo que de fato estejam falando do mundo. O problema aqui é que eles não são um desafio à hegemonia, por isso não são percebidos como políticos.
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Cadê a mamãe? |
Os gamers se atrapalham porque, enquanto o discurso apenas confirma o status quo, ele fica invisível. Quando ele representa e simula situações de violência e relações de poder normais, naturalizadas, conformadas à ideologia neoliberal, fica impossível enxergá-las - no máximo ganham ares de "estilo" ou "senso de humor excêntrico" quando muito evidentes. Os gamers chegam à conclusão de que, por não ser visível, o discurso não está lá. É como aquela brincadeira de esconde-esconde que se faz com bebês: o adulto se esconde por trás de uma toalha e o bebê fica confuso, não entende que o adulto continua lá e não pode ser visto. O bebê e o gamer não tem formação pra entender que nem tudo o que é invisível é inexistente. A ideologia é a toalha.
É muito parecido o modo como os gamers e os crentes neopentecostais falam do mundo - o mundo nunca os inclui, o mundo é o território do inimigo, seja ele o demônio ou o comunismo, o feminismo, o gayzismo etc. e tal. Tanto videogame como jesus cristo são essa coisa apartada da vida, que nos protege do mundo, um refúgio sem contato com a complexidade das coisas, um lugar puro, onde tudo é amor. E amor aqui significa placidez, indiferença, conformismo, acriticidade, conforto, redundância e ódio àquilo que coloca o amor em perspectiva. Os mercadores da fé e os mercadores da diversão têm muito em comum: isolam de um todo complexo um elemento que não funciona sozinho. Sem função, esse elemento encontra um antimundo que preencha o vazio, esse antimundo é o capitalismo. É por isso que também precisamos da informação, da denúncia e do auto-conhecimento. Quer dizer: é por isso que precisamos de fundamentos críticos na nossa cultura, nos momentos em que também nos divertimos, caso contrário tudo vira instrumento de manutenção do capitalismo, tudo vira o antimundo que é o capital, tudo vira confirmação da supremacia branca, do patriarcado, do colonialismo, da cis-heteronormatividade e dos demais sustentáculos do capitalismo. A defesa de uma diversão sem mundo é egoísmo consumista e miopia despolitizada, queda vertiginosa na espiral do conformismo.
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