sábado, 13 de julho de 2024

CONTRA O NETWORKING: Abolir o conformismo parassocial e liberar a imaginação socialista

O sujeito neoliberal como empreendedor de si mesmo é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito. Entre empreendedores não surge amizade desinteressada. Contudo, ser livre significa originalmente estar com amigos. (...)
Hoje, as pessoas são tratadas e comercializadas como pacotes de dados que podem ser explorados economicamente.
Byung-Chul Han

Para que a revolução social possa realizar-se, é necessário que o espírito popular encontre novas formas de organização societária.
Piotr Kropotkin


Acho que todo mundo familiarizado com redes sociais já ouviu falar em networking. Vocês sabem: quando nos cercamos de gente que pode nos oferecer vantagens econômicas. Como seria possível criticar um recurso tão básico de sobrevivência no mundo da precarização capitalista? "O que colocar no lugar", não é mesmo? Talvez seja impossível evitar o networking quando nosso trabalho depende das redes sociais, já que boa parte da coisa está automatizada - mas daí a concluir que a entrega obediente seja tudo o que podemos fazer, acho uma postura conformista demais. Em geral a negação da crítica é apenas o neoliberalismo falando mais uma vez: não há alternativa, não existe sociedade, vamos todos morrer no capitalismo e salve-se quem puder. Contra esse tipo de fatalismo, sigamos a recomendação de Paula Sibilia: É preciso desnaturalizar as novas práticas comunicativas.

FAMÍLIA MANSON

Vamos dar uma olhada no seguinte episódio: Charles Manson foi um supremacista branco que fundou e liderou uma pequena seita pós-hippie na Califórnia sessentista. Manson dizia que estava para acontecer uma grande guerra de negros contra brancos, e usou seus seguidores para praticar uma série de assassinatos de brancos, que serviriam para incriminar negros e provocar o estopim da tal guerra. Hoje em dia ele talvez fosse presidente dos Estados Unidos ou, quem sabe, um digital influencer muito famoso. Talvez acabasse modelando sua doutrina para soar mais palatável à sensibilidade mainstream, sem a parte dos assassinatos (ou terceirizando essa parte para seu fandom) e afirmando que luta contra "o politicamente correto" ou a favor da "liberdade de expressão", à moda alt-right. Mas no fim dos anos 60 não havia capitalismo de plataformas para potencializar o culto à sua personalidade, e ele acabou se tornando apenas um presidiário excêntrico bastante explorado na mídia. Ótimo para assustar pais de adolescentes rueiros e vender entretenimento exploitation.

Manson já tinha passado pela prisão antes de fundar sua seita, por crimes não relacionados como estupro e roubo, e foi numa dessas passagens que se fascinou por um livro: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie. O best-seller foi publicado em 1936, recebendo sua última revisão em 1981. O livro, lido e comentado ainda hoje, é basicamente um curso sobre manipular os outros com truques simples de psicologia positiva (Carnegie confere dignidade científica ao seu curso citando o "mundialmente famoso" B. F. Skinner, entre outros) e acumular um séquito para benefício próprio.

Trago a história de Manson não para dizer que o networking sempre produzirá experiências fascistas ou fascistoides em qualquer contexto em que ocorre, mas para ilustrar o fato de que o networking não contém nada que possa evitar tais consequências, e os piores indivíduos tendem a ser os mais beneficiados. Isso porque não há no networking qualquer fundamento ético ou político, apenas uma razão econômica profundamente antissocial posta em funcionamento, sendo perfeitamente compatível com a formação de seitas ou grupos de ódio. A economia capitalista, sem resistência social capaz de lhe pôr um fim ou pelo menos frear seu avanço, sempre irá desaguar no esgoto do fascismo - se não em termos e conteúdo, certamente na sua forma. O outro é alguém que nos serve ou serve para morrer de fome.

Imitações mais atuais do Como Fazer Amigos incluem malandragens para se dar bem nas redes sociais e se disfarçam como cursos de administração e empreendedorismo. Carnegie ainda não tinha dado um nome a esse grande segredo que a escola e os odiáveis professores comunistas escondem dos mortais, mas hoje o networking é divulgado o tempo inteiro, considerado uma técnica de "marketing pessoal" - literalmente nos tomarmos como mercadoria. Se relacionar com as pessoas é, de acordo com as cartilhas de gestão empresarial, o trabalho necessário para que possamos nos vender bem, essa sendo a principal finalidade de tudo o que fazemos.

UM LIVRO DE AÇÃO

O comunismo não precisa nascer do útero do futuro, ele está aqui, em nós mesmos, na vida imanente do conhecimento compartilhado.
Franco Berardi

Carnegie diz que escreve um livro de ação, despreza os "tomos de psicologia" de onde não se aprenderia nada de útil, despreza a educação formal que não nos ensinaria a única coisa que importa: ganhar dinheiro tirando vantagem dos outros. Carnegie também insiste que devemos correr da discussão e da crítica para não queimar pontes, e reduz as "cores políticas" de um indivíduo a um banco de dados que devemos acessar para explorar numa conversa produtiva - nada diferente das big techs e seu grande negócio de erosão das democracias do sul global. É muito mais generosa a definição de Milton Santos: política como arte de pensar as mudanças e de criar as condições para torná-las efetivas. Para Carnegie, que se dane, podemos dar nosso melhor sorriso a quem constrói efetivamente a realidade que nos tortura e mata.

A "ação" a que Dale Carnegie se refere não tem nada a ver com agir, mas com não pensar. O livro é ativamente anti-intelectual, confunde o conhecimento com um excesso dispensável, uma perda de tempo que pode ser substituída por dados sobre comportamentos e preferências das pessoas, informação-mercadoria. Os liberais aprendem que a escola serve para nos inserir no mercado e disso extraem que é inútil qualquer coisa que ali ocorra fora desse propósito. Essa visão da educação se manifesta hoje no Novo Ensino Médio e suas matérias esvaziadas de conhecimento como "Projeto de vida", que traduzem a vida como apenas mais uma estria nos circuitos do capital.

O networking nem sequer é um conceito, não está na ciência, nem na filosofia, e não tem raiz no saber popular. É invencionice publicitária divulgada por trambiqueiros e aceita sem demora pelos tipos mais ambiciosos e afoitos. As palavras significam coisas, tem história e tem vida, trazem consigo formas de organização e modos de pensar - o fato do anglicismo já deveria ligar um sinal vermelho, aguçar nossa curiosidade pela origem da papagaiada, mas parece que preferimos nos deixar seduzir por cada novo concept que aparece. Ah, o concept! A publicidade fez esse favor de separar o pensamento dos conceitos, que se converteram em palavras lucrativas. Sua capacidade de percorrer a economia dos memes é o que substitui sua substância, e o volume de repetições atesta sua importância.

Talvez o networking seja ferramenta indispensável para a sobrevivência do indivíduo sujeito à gig economy generalizada que se instalou no cenário de escassez de empregos tradicionais e de perseguição violenta dos modos de vida comunais. Por isso é compreensível que indivíduos desesperados se apeguem a jargões como se fossem eles que botam comida na mesa - e não a pequena parte do trabalho que sobra da extração da mais valia. Alguns podem se envolver em defesas apaixonadas, se gabando por serem homens de ação - ou seja, que desprezam conhecimento e aceitam tudo o que é dito pela mão que segura sua coleira. Podem se gabar de seu realismo ignorante praticista, duvidando da justa desconfiança e descartando-a com o orgulho típico dos idiotas manipulados que se acham espertos.

Mas participar não é opcional. Boa parte do networking está automatizado - podemos avaliar em números o quão importante (o que também significa "lucrativa") é uma pessoa a partir dos mostradores em seus perfis de rede social. Estar localizável (e quantificável) nas redes pode ser um fator decisivo na hora da contratação. E naturalmente queremos estar mais próximos dos números altos (que podem ser pessoas, empresas ou pessoas-empresa) e distantes dos perfis que podem colocar nossos números em queda. Buscar uma boa posição no networking não é muito diferente de apostar na bolsa de valores, com o agravante de que cada pessoa se torna uma empresa de capital aberto, e o dinheiro que jogamos são nossos afetos e subjetividades (até porque somos pagos mais com reforço psicológico do que com dinheiro). O problema não é a "cultura do cancelamento", que os liberais acham tão preocupante. Ela é apenas um dos efeitos do networking, que converte relações sociais em jogos de investimento, marca os perfis arriscados e elimina das nossas práticas sociais aquelas incompatíveis com o cálculo financeiro. Os perfis mais afetados pelo tal do "cancelamento" são, na maior parte, aqueles que nem tiveram acesso às vantagens do networking. Só é descartado quem não pode investir grandes quantias em seu próprio perfil, contratar uma equipe multidisciplinar para gestão de crise e recolocar sua marca na competição.

O segredo do sucesso é a herança, a escravidão e o roubo. Não há técnica de marketing que desfaça isso. Precisamos examinar o que os patrões, gerentes, influencers e embromadores do RH repetem sem parar. Fora disso, apenas a colaboração anticapitalista (esteja ela fundada nas doutrinas de esquerda ou na tradição dos povos) consegue construir alguma coisa. E aí não se trata de segredo nenhum, mas de simples prática, estudo (pelos livros ou pela escuta dos mais velhos) e organização (seja qual for a linha política dos seus). Aí está nosso verdadeiro tesouro.

HOMEM DE VALOR

Só os atores hegemônicos se servem de todas as redes e utilizam todos os territórios.
Milton Santos

A extrema direita se dá muito bem com o networking e inclusive expande seu funcionamento sem nenhuma vergonha. Nas seitas misóginas contemporâneas como redpillincel MGTOW, o sexo é traduzido como um mercado. Nelas, os homens tem um valor de mercado que é determinado por fatores como ser rico ou bonito - a beleza aqui ganha contornos eugenistas. As pessoas são categorizadas em tipos de "alto valor" e "baixo valor", toda relação social ou sexual sendo um investimento com seu preço, cada gesto sendo calculado numa tabela... num primeiro momento essas coisas podem soar como metáforas inofensivas, mas é tudo bem literal e profundamente fundamentado no sistema de classes capitalista e na família nuclear. Se você quer entender o que é o networking sem disfarces, sem a maquiagem progressista, aí está. O misógino militante o pratica de forma muito clara. Cada pessoa só tem valor na medida em que pode ser utilizada por outra mais poderosa.

BIBLIOGRAFIA

BERARDI, Franco. Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem
CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas
GUINN, Jeff. Manson
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica - o neoliberalismo e as novas técnicas do poder
KROPOTKIN, Piotr. Socialismo
SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar
Por uma outra globalização
SIBILIA, Paula. O show do eu

3 comentários:

  1. Ótimo texto, pra variar a gente sem querer tá dialogando temas que nos tocam no momento. Vou tecer uns comentários meio fragmentados aqui, hehehehe.

    Tá na moda mesmo no discurso de internet um tipo de fatalismo cínico, que finge que não se importa com o fato de "estarmos todos ferrados e sem futuro". É a morte da utopia em forma mais bruta.

    Essas relações via redes hoje é total a aplicação de Skinner: psicologia animalesca de punição ou recompensa. E isso tá se tornando a referencia de relação e "comunidade" entre as pessoas.

    O Neo Liberalismo veio para atomizar a vida, dividir, evitar a organização coletiva, substituir o social pelo individual, a comunidade pelo networking. É a substituição das regras sociais pela "ética da empresa" (que de ética tem muito pouco), mas que é na verdade um tipo de "regras e condutas" típicas de um presídio, também espresas hoje como as falsamente chamadas "regras da comunidade" das redes sociais. Nada menos comunidade que as tais "regras da comunidade".

    E não é que as relações de comunidade antes fossem desintereçadas, mas era uma noção bem diferente de interdependência entre as pessoas, de que elas dependiam da colaboração. Essa foi substituída pela ideia de "degraus" que você sobe, geralmente pisando na cabeça e alguém.

    A coisa do "marketing pessoal" revela essa ideia de que você deve espontaneamente se ver como um produto. E as redes sociais catalisam isso, pra piorar.

    E tá doido, esses ara de "auto ajuda empresarial" são horríveis, um negócio desprezível que reduz o ser humano a uma entidade não asocial, apolítico, e consequentemente anti ético, por que essas cosias não existem separadas (nem foi falar da estética, que não existe também sem estas anteriores, mas isto é assunto pra outra vez). Acho que o melhor exemplo da ficção moderna desse sujeito é o personagem de "Psicopata Americano", um investidor de Wall Street completamente auto centrado, narcisista, obviamente um psicopata, e exatamente por isto um sucesso no mundo da bolsa de valores. Esse é o sujeito perfeito de livros como esse. Gosto de uma figura de linguagem do filme que é a "troca de cartões de visita" dos personagens do meio de investidores, onde eles competem pra ver quem tem o cartão de visita mais chique e imponente, como se aquilo fosse representante do sujeito ser melhor que o outro. Os cartões de visita no filme me lembrar o que são as redes sociais hoje.

    Sabem quem a muitas décadas lê e aplica na prática as artimanhas dessa auto ajuda empresarial? Pastores de igrejas neo petencostais.

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  2. Embora eu concorde em tudo dessa sua caracterização, queria fazer uma provocação: sou um trabalhador da indústria de jogos, que precisa do networking para conseguir sobreviver, como você apontou no texto. Então... qual a proposta prática de ação? O que eu devo fazer, CONCRETAMENTE?

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    1. Fliperamas, a proposta prática de ação é sempre fliperamas.

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