Tradução de Pedro Paiva a partir do original de Marina Kittaka.
Desistir da Indústria do Videogame!
Marina Kittaka
Este texto procura contextualizar os problemas da indústria do videogame relacionados à sua própria mitologia e, a partir daí, imaginar e celebrar novas direções de uma perspectiva anticapitalista e comprometida com práticas de compaixão.
Meu nome é Marina Ayano Kittaka (ela/dela), sou da quarta geração de mulheres trans nipo-americanas de classe média. Eu trabalho numa variedade de diferentes formas de arte mas meu ganha-pão são os videogames que faço com meu amigo Melos Han-Tani, como os jogos da série Anodyne.
Eu não sou uma autoridade em nenhum desses tópicos, e não é minha intenção falar por ninguém ou oferecer uma grande solução, apenas ser mais uma peça de uma conversa e movimento mais amplos. Uso frases declarativas e imperativas por questões de clareza, não de certeza.
Eu busco seguir a liderança de pensadores abolicionistas negros, indígenas e não-brancos em geral (BIPOC no original) como Ejeris Dixon, Leah Lakshmi Piepzna-Samarasinha, Adrienne Maree Brown e Ruth Wilson Gilmore, bem como grupos locais como Black Visions Collective e MPD150. Estou aberta a qualquer retorno sobre este texto, especialmente se você perceber que eu disse algo ofensivo.
Este texto é inspirado pela última onda de sobreviventes compartilhando bravamente suas histórias (estamos em junho de 2020, durante a pandemia de COVID-19 e o levante global dos movimentos negros contra o racismo e a instituição policial). Eu acredito e apoio os sobreviventes.
Os Problemas
A indústria do videogame tem problemas muito profundos, trágicos e inter-relacionados. Está além do escopo deste texto examinar a totalidade da cultura dos videogames (vou focar em desenvolvimento e, em menor grau, distribuição). Também está além do escopo deste texto convencer alguém de que esses problemas existem, eu vou considerar que todos concordamos que eles existem. Aqui está uma lista incompleta:
- Abuso sexual generalizado;
- Abuso trabalhista, bullying, crunch, burnout, condições de trabalho exploradoras em geral;
- Sexismo, racismo e outras formas de intolerância - os abusos citados nos itens anteriores se acentuam quando encontram esses preconceitos (por exemplo: abuso sexual de gêneros marginalizados ou a exclusão de minorias raciais);
- Problemas na cadeia de suprimentos incluindo minerais extraídos em zonas de conflito e superexploração do trabalho fabril;
- Impacto ambiental grave;
Sem Julgamentos
Esta conversa pode ofender ou provocar sentimentos defensivos. Quero falar especificamente sobre isso. Muitas pessoas amam videogames, e não só isso, mas estão profundamente investidas no mundo dos games. Eu fico particularmente sensibilizada por autores marginalizados que lutaram pra conquistar uma nota de rodapé na indústria do videogame e merecem seguir seus sonhos. Eu existo mais na periferia da indústria dos videogames e meu objetivo não é centrar a coisa toda em minha raiva pessoal ou desdém - pelo contrário, quero que avancemos rumo a um mundo com melhores jogos, jogados por audiências mais felizes, feitos por criadores que se sentem seguros e apreciados.
Além disso, esta conversa não é sobre os méritos de nenhum jogo AAA de grandes estúdios. Não é sobre constranger pessoas a assumir certas crenças ou comportamentos. Quando tentamos agir como se nossos gostos pessoais estivessem alinhados com nossos ideais mais elevados, provocamos vergonha e negação - coisas que nos distanciam uns dos outros.
Também não falo exclusivamente de AAA. Isso é sobre qualquer situação onde o poder se torna o ponto. Podem haver gradações que vão dos maiores complexos industriais até as menores micro-comunidades. Podemos nos libertar em todos os níveis.
A Promessa da Indústria
Eu acredito que muitos de nós como criadores de jogos e audiência temos acreditado (conscientemente ou não) na ideia de que a felicidade e o maravilhoso são mercadorias escassas e frágeis - jóias preciosas mineradas por processos arcanos custosos. Às vezes a vida pode ser solitária, alienante e traumática, e muitos de nós cooperamos abrindo mão de partes importantes de nós mesmos¹. A pungência e o prazer de simplesmente sentir se tornam raros.
Em resposta a essa percepção de escassez, a Indústria avança com a promessa de que uma maestria no design e no desenvolvimento de tecnologias pode "fazer" as pessoas sentirem. Isso fica evidente não só nas campanhas de marketing e em entrevistas com desenvolvedores, mas também em afirmações problemáticas de que os jogos podem te tornar empático, ou através da noção muito comum de que os jogos são uma forma de arte excepcionalmente "imersiva" em função da sua "interatividade". Incluída nessa promessa está a noção sempre sedutora de que o progresso tecnológico é linear: os games em geral precisam ficar melhores, mais bonitos, mais emocionantes, porque é assim que a tecnologia funciona! Ou talvez a beleza esteja no progresso em si - cada salto impressionante em direção ao fotorrealismo nos causa a sensação ilusória de maravilhamento que tanto buscamos.
Aqui eu poderia argumentar que os benefícios não justificam os custos, os Problemas mencionados anteriormente se sobrepõem a essa visão idealizada do que os games nos oferecem. Mas eu aposto que muitos de vocês não se satisfazem com isso, né? Por que a gente simplesmente não reforma o sistema? Por que não espalhar a conscientização e treinar as pessoas sobre sexismo e racismo, criar mais arte que gere empatia e encorage diversidade? Interromper o progresso tecnológico não seria jogar o bebê fora com a água do banho, sendo que seria mais fácil corrigir alguns problemas de alguma liderança ruim aqui ou de algum superstar abusivo acolá?
Aqui nós chegamos no meu principal objetivo ao escrever este texto: expandir o espaço imaginativo ao redor dos videogames arrancando A Promessa da Indústria pelas raízes. Se o maravilhamento não é escasso e o progresso não é linear, então o mundo que nascer das cinzas da Indústria do Videogame pode ser mais excitante e mais tecnologicamente vibrante do que jamais foi.
Jóias Preciosas
Respire bem fundo e imagine os momentos mais felizes da sua vida. Talvez alguns deles se pareçam com isso:
Ficar acordado até tarde sendo bobo alegre com um amigo; contemplar uma paisagem bonita; um beijo apaixonado; colaborar com amigos numa sessão de Dungeons & Dragons ou Minecraft; um presente significativo de alguém que você admira; uma bebida gelada num dia quente de verão; cantar uma música; um abraço de alguém perfumado; comer porcarias tarde da noite e curtindo essa pequena transgressão; as cores vívidas e os sons de um entardecer chuvoso na cidade; pegar no sono durante o silêncio agradável de uma tarde no interior; ter uma conversa cheia de significados com um bebê não-verbal.
Pense nos jogos que você mais gostava quando criança, os jogos que te faziam sentir envolto em possibilidades, mistério e diversão. Eles eram os mais avançados tecnologicamente? Os mais aclamados pela crítica?
Talvez seus momentos felizes não se pareçam nada com isso. Ou talvez você não consiga se lembrar de ter se sentido feliz e isso é o problema. Mas meu ponto é que a felicidade, excitação, diversão... essas coisas são, essencialmente, fluídas, sociais, narrativas, contextuais, químicas. Nas melhores e mais comuns situações, a felicidade não é despejada no seu corpo passivo como uma experiência de "alta qualidade". Pesquisas recentes na área de psicologia e diferentes tradições ao redor do mundo (budismo, por exemplo) sugerem que a felicidade e o bem-estar são habilidades enraizadas na compaixão e que podem ser desenvolvidas.
Pense nos bilhões de pessoas que já viveram, através do tempo, através de todas as culturas, com ou sem videogames, vivendo de forma nômade ou assentadas em cidades ou florestas. Em cada momento há infinitas razões para sofrer e infinitas razões para ser feliz². Quando os gigantes monopolistas da indústria reivindicam "arte" ou "entretenimento" eles estão contando uma mentira capitalista, sem sentido e ao mesmo tempo inescapável.
A Narrativa da Tecnologia e Progresso
Esta é uma conversa anti-tecnologia? Estou sugerindo que todos saiamos às ruas como nos bons e velhos tempos para brincar de roda até o fim dos tempos? Vamos começar examinando o que queremos dizer com "tecnologia". Eis uma definição:
Tecnologia é a soma das técnicas, habilidades, métodos e processos usados na produção de bens e serviços ou na solução de problemas.-Wikipedia
Honestamente, tecnologia é um conceito tão amplo e vago que quase qualquer coisa que qualquer um possa fazer pode ser considerado tecnológico! Assim sendo, o modo como normalmente usamos o termo é muito revelador dos nossos valores culturais. Poder computacional, escala massiva, gráficos fotorrealistas, AIs complexas, experiências em VR que tentam recriar os elementos visuais e aurais de uma situação real ou imaginada... certamente tudo isso é tecnológico e cresceu em sofisticação ao longo dos anos. Mas o que A Indústria considera progresso tecnológico consiste, na verdade, na exploração de nichos bastante estritos que foram inflados artificialmente porque os capitalistas descobriram que podem ganhar dinheiro dessa maneira. É claro que eu não uso "nicho" aqui como um insulto - muitas das coisas mais fascinantes não são intrinsecamente nicho? Mas quando uma narrativa restritiva consome todo o ar da sala e deixa um rastro de devastação física e emocional... não está na hora de questionar?
E se os seres humanos tendo suas necessidades básicas satisfeitas fosse considerado "progresso tecnológico"? E se os modelos indígenas de vida sustentável fossem considerados "hi-tech"? E se criar um mundo mais acessível onde as pessoas teriam liberdade de movimento abrisse numerosas experiências sensoriais de alta fidelidade? Essas questões vão além do escopo da indústria do videogame, claro, mas nas palavras de Adrienne Maree Brown, o que praticamos na pequena escala define os padrões de todo o sistema³.
O Que Esperamos Ganhar
A reação instintiva ao desmantelamento de uma estrutura existente tende a uma visão subtrativa. Aqui estamos nós, vivendo no exato mesmo mundo, mas todos os videogames blockbuster desapareceram como num passe de mágica... só restaram jogos indie hipster! Falta a essa visão o entendimento de que a nossa existência atual é ela mesma subtrativa - aquilo a que nos apegamos agora existe ao custo de muitas outras coisas boas. A perda das habilidades e da visão amadurecida pelo trabalho de pessoas que deixam a indústria por causa de burnout, assédio sexual e depreciação racista. Leis corporativas de proteção à propriedade intelectual que desencorajam a preservação e roubam nossa história tão rica e fértil. A internet centrada em publicidade, higienista e que sufoca espaços comunistários democratizados. A mentalidade de competição por migalhas que a indústria mainstream inculca nos criadores pequenos e seus projetos modestos. Nosso sistema de valores atual limita não apenas o que o AAA pode ser mas também o que tudo o mais pode ser.
A utopia não tem uma estética. Não precisamos definir de atemão como seria o "alternativo" correto. Jogos podem ser altos e baixos, sagrados e proganos, fofos e feios, lado esquerdo e direito do cérebro. Destruir a indústria do videogame não significa escolher um nicho alternativo para substituí-la. Ao invés disso, buscamos abrir as comportas para um mundo em que incontáveis nichos descentralizados, íntimos e sobrepostos possam prosperar.
Quando descentralizamos poder, não criamos apenas as condições para mais e melhores jogos, nós também diminuímos as condições sob as quais o abuso pode florescer. Muitas das histórias de abuso acontecem em contextos em que o agressor tem o poder de ajudar ou prejudicar dramaticamente as carreiras de outros. A consolidação desse poder é reforçada por nosso investimento coletivo na Promessa da Indústria (sem esquecer as intersecções de opressões da cultura mais ampla). Figuras mitologizadas ascendem por um eixo linear de grandeza, protegidas pela horrível noção de que são menos substituíves do que outras porque sua posição no ranking d'A Indústria é evidência de sua importância mística.
O Que Vem em Seguida?
Eis uma verdade fundamental: nós não precisamos de videogames. Paradoxalmente, essa verdade abre o mundo dos videogames para que seja tão variado e cheio de estranhezas e contradições quanto a própria vida.
Então digamos que você concorda com minhas afirmações de que podemos coletivamente prosseguir com o fim da indústria do videogame através do desinvestimento da nossa atenção, tempo e dinheiro, e construindo algo novo uns com os outros. Mas como isso seria na prática? Eu não tenho todas as respostas. Acho a comunidade muito difícil por causa de meus próprios traumas. No entanto, vou fazer uma tempestade de ideias. Procure por algo que dialoga com você pessoalmente ou faça sua própria tempestade de ideias!
Centralizar lideranças não-brancas/queer
Pessoas que são frequentemente alienadas de participar de uma cultura mais ampla e têm experiência em criar alternativas. Se inspire em influências que atuam fora da mídia, em contextos como justiça transformadora, abolição da polícia e abolição das prisões. Livros como Beyond Survival e Emergent Strategy são baseados na profunda compreensão do processo organizativo, muito mais do que qualquer coisa que eu tenha escrito aqui, e são muito mais relevantes para questões diretas e imediatas como respostas a assédio sexual em nossas comunidades.
Desinvestir da celebridade/autoridade
Muitas pessoas vão te dizer que seus relacionamentos artísticos mais gratificantes foram com colegas, não com mentores e certamente não com ídolos. Se desengaje desse papel de espectador das redes sociais, esse esporte em que personalidades maiores do que a vida se destacam por "hot takes". Questione a narrativa dos gênios venha de onde vier. Cultive seu próprio poder e o poder daqueles que estão próximos de você. Se você percebe que está se tornando uma celebridade: dê um passo para trás, reconheça esse poder que exerce sobre os outros, redirecione oportunidades para criadores marginalizados cujo trabalho você respeita, invista em áreas completamente não relacionadas da sua vida, faça terapia.
Desinvestir do excepcionalismo dos videogames
Os acadêmicos mergulharam no complexo de inferioridade dos videogames e no tópico do "excepcionalismo dos videogames", que está atrelado no que eu apresentei como A Promessa da Indústria acima - a ideia de que os videogames como uma vanguarda tecnológica estão cheios de um valor inerente graças a tudo aquilo que eles podem fazer e que outras formas de mídia não podem. Isso garante o investimento de grandes quantidades de dinheiro, mas é uma noção a-histórica e isolacionista que não faz nada para avançar de verdade no aprofundamento da nossa compressão dos videogames como uma forma (uma discussão interessante sobre isso pode ser lida aqui, que me lembra o trabalho de Richard Terrell sobre vocabulário).
Reimaginar a escala
Questione rigorosamente a noção de que "quanto maior, melhor" a cada passo. No que se refere a projetos, estúdios, eventos, pergunte sempre "por quê?" diante de qualquer pressão para fazer algo maior, e procure determinar quais seriam as perdas e quais seriam os ganhos. Alguns valores tendem a ser comprometidos na ampliação da escala, podendo envolver abusos no local de trabalho e acordos com entidades questionáveis. O que me lembra de uma pesquisa liderada pelo psicólogo Daniel Kahneman sugerindo que a felicidade tende a diminuir dramaticamente à medida em que um padrão de vida confortável é superado pelo enriquecimento exagerado. Qualquer um que já tenha viralizado um tweet pode perceber como a coisa é divertida no começo mas em seguida começa a ficar irritante. Viver num mundo global conglomerado, nós frequentemente precisamos enfrentar as métricas sociais que são completamente incompreensíveis pelo que nossos cérebros são programados para processar, e os resultados são desastrosos. Há usos legítimos para uma grande equipe trabalhando num mesmo projeto por muitos anos? Claro, provavelmente, mas a ideia de que isso é o padrão, a normalidade e o formato ideal pelo qual todos deveriam estar se esforçando pra atingir não se baseia em nada além de propaganda.
Redefinir nicho
Acima eu sugeri que o AAA é um nicho. Acredito que isso seja verdade em termos gerais, e é definitivamente verdadeiro em relação ao seu orçamento. O que quero dizer com isso? O marketing do AAA custa 75-100% a mais sobre os custos de desenvolvimento (talvez até mais em alguns casos). Isso não é enlouquecedor? Se um jogo naturalmente tivesse esse apelo massivo apenas em função de sua Alta Qualidade ou de sua Tecnologia Avançada, por que precisaríamos gastar dezenas ou centenas de milhões de dólares apenas para convencer as pessoas a jogar? Em contraste, Melos estima que o nosso orçamento de marketing pro Anodyne 2 foi 10% do custo de desenvolvimento, e foi um sucesso comercial razoável. Certamente o marketing é um campo complexo que pode ser ético mas, para mim, há algo profundamente problemático sobre a capacidade que grandes estúdios têm de comprar a própria relevância (de acordo com algumas pesquisas, o marketing afeta as vendas de um jogo três vezes mais do que pontuações altas em reviews).
Em uma nota separada mas ainda relacionada, eu não acho que aquilo que é percebido como benefício do AAA como os avanços em fotorrealismo vão desaparecer sem a máquina d'A Indústria por trás. As pessoas são surpreendentes e apaixonadas! A coisa não vai sempre necessariamente se parecer com um mundo de aventuras de 60 horas de duração, mas o videogame de fotorrealismo pode ser um nicho como qualquer outro.
Não se esqueça do seu corpo
Auto-compaixão, atenção plena, meditação, exercício, respiração, natureza, inter-being. Há muitas maneiras de construir sua capacidade de experimentar alegria, assombro e felicidade. Uma das coisas mais difíceis desse processo é que com frequência esses assuntos são atravessados por Estéticas Extremamente Específicas que podem não ressoar com você (New Age ou algum tipo de apropriação cultural, por exemplo). Meus conelhos são 1) esteja aberto a práticas que não se encaixam no seu branding pessoal 2) procure adaptar o espírito deste conselho a alguma prática que realmente faça sentido pra você. O benefício de localizar nosso potencial de felicidade dentro de nós mesmos é o que nos ajuda a perceber a superficialidade d'A Indústria e como somos livres para pegar o que queremos e descartar o resto na pilha de composto.
Fazendo um comentário paralelo, alguns artistas (com acesso estrutural a terapia e cuidados com a saúde mental) tem medo de cuidar da saúde porque temem perder o vigor que os permite fazer boa arte. Falando enquanto artista que viu sua capacidade criativa crescer na mesma medida em que garantia sua saúde mental, acredito que as pessoas não precisem se preocupar com isso, por uma série de razões.
- Você carrega o seu passado consigo, mesmo quando passa por transformações. "Nossos corpos são reservatórios neuronais e fisiológicos de todas as nossas experiências significativas, desde o passado pré-natal até o presente,"⁴
- Você pode perder uma coisa e ganhar outra. Você pode ganhar 6 coisas no lugar de uma que perdeu.
- O que você considera ser definitivamente "bom na arte que faz"? Satisfação do ego? Conexão humana? Respeito próprio? Todas essas coisas podem ser conquistadas mais facilmente nesse cenário tão temido em que você é tão feliz e saudável que nem precisa mais fazer arte. Corte os intermediários! Arte é para os nerds!
Invista fora dos games
A cultura do videogame costuma encorajar uma identificação total com os videogames. Isso pressiona desenvolvedores a trabalhar e audiências a consumir, convenientemente beneficiando executivos e acionistas em detrimento de todos os outros. Investir em interesses totalmente não-relacionados aos videogames é benéfico em tantas maneiras, e sempre há alguma coisa para cada um! Pessoalmente, eu adoro livros. Uma novela é "low-tech" tanto quanto um jogo AAA é "high-tech", e livros são acessíveis [não no Brasil], leves quando processados digitalmente, fáceis de preservar, estimulantes, desafiadores, imersivos e divertidos. O que é tecnologia, mesmo?
Outro pensamento pertinente: mesmo que não haja nada inerentemente errado em namorar um colega desenvolvedor de jogos, você não deveria entrar na indústria e seus locais de trabalho procurando por envolvimento romântico. Particularmente se você tem algum tipo de poder institucional, você vai inevitavelmente colocar os outros em situações desconfortáveis e estará mais próximo de cometer abusos. Se você quer sexo, relacionamentos etc., procure outros contextos, outros pontos de encontro, outros campos de interesse.
Trabalhar por um mundo mais acessível
No contexto de um mundo sistemicamente capacitista, videogames podem ser - na sua melhor forma - experiências divertidas e significativas para pessoas com deficiência. Consequentemente, quando eu digo "desista da indústria do videogame", eu não quero ignorar o fato de que essa desistência tem um custo diferente para diferentes pessoas. Com certeza a acessibilidade nos videogames continua sendo importante como sempre, mas e se nós realmente começássemos a investir mais no "mundo fora dos games", me parece extremamente vital que isso ocorra com um compromisso em tornar o mundo lá fora um lugar mais acessível. Por exemplo, pessoas sem deficiência podem ter muito a aprender com as perspectivas únicas e a liderança das PCD nesse momento em particular, em que enfrentamos o isolamento social e a naturalização do homeoffice em função do COVID, e devemos manter essa escuta mesmo depois da flexibilização das restrições, pois corremos o risco de fazer um retorno hipócrita e seletivo à normalidade.
Investir em avanços tecnológicos alternativos
Pra onde mais nós poderíamos direcionar nossos recursos, atenção e energia se não estivéssemos tão focados numa definição tão restrita de avanço tecnológico? Por exemplo, jogos audio-only poderiam florescer como uma área fértil para o desenvolvimento tecnológico. Que tal avançar nas pesquisas por microchips e baterias recicláveis ou biodegradáveis? Uma reimaginação completa do modelo de "console doméstico" que a cada sucessiva geração tem sua obsolescência forçada pra justificar a venda de dezenas de milhões de novas unidades da próxima versão? Algo como um fliperama ou salão de jogos (todos eles precisam ter a mesma estética agressiva?). O sucesso do Pokemon GO parece apontar para o potencial de experiências mais sociais, não-remotas e com um apelo para demografias e senso estético mais amplos. Na Biblioteca Pública de Portland (Maine), há um setup de consoles na seção adolescente onde as crianças locais podem brincar, e eles também tem uma seleção de jogos para levar para a casa - isso é muito legal! Organizações de desenvolvedores locais como GLITCH criando eventos onde os colegas mostram e testam seus jogos junto ao público...
Procurar ferramentas pequenas
Ferramentas pequenas como as engines voltadas para hobbystas funcionam muito bem como trampolins para a comunidade. Veja ZZT, o Game Maker no seu começo (gamemakergames por exemplo), OHRRPGCE. Veja Bitsy, PuzzleScript, Pico-8! Veja Electric Zine Maker, ferramenta criada por Nathalie Lawhead, e também este post escrito por ela sobre ferramentas pequenas. Ferramentas pequenas, em virtude de suas limitações, tendem a nos guiar por estéticas e objetivos específicos. Esteja você jogando pelas regras das limitações ou tentando superá-las, o ponto de chegada é uma conversa sobre design que favorece a comunidade. Participar dessas comunidades na infância (embora eu raramente interagisse diretamente) plantou em mim algumas ideias como: as pessoas são responsáveis pela própria diversão; o maravilhamento não está correlacionado ao orçamento; ser estranhamente específico tem valor. Será que outras estruturas podem aprender com as ferramentas pequenas? Eventos, encontros, festas... o que acontece se pensarmos nisso tudo como "engines" comunais - estruturas construídas ao redor de um interesse em comum que motiva as pessoas a criarem coisas para se expressar...?
Algo que me ocorre com frequência é que talvez seja fundamentalmente saudável para todos nós se fôssemos "peixes grandes em pequenos lagos" de um jeito ou de outro. A ideia de que existe por aí um Verdadeiro Grande Lago que vá refletir todos os nossos valores coletivos simultaneamente é um mito danoso que serve para direcionar toda a admiração e energia aos interesses corporativos e nos rouba de nós mesmos, impedindo que nos realizemos.
Falha como práxis
A "arte do profissionalismo" como a capacidade de manter a ilusão compartilhada de que existem medidas indiscutíveis de beleza e mérito. Quando você permite que essa ilusão caia por terra - às vezes contra você - 1) o poder capitalista vai ser frustrado na sua tentativa de extrair de você a máxima eficiência e 2) pequenos criadores seus colegas vão se entusiasmar porque você superou a ilusão e ao mesmo tempo ofereceu algo importante. A falha num sistema de cabeça para baixo pode ser força. Crescer como artista pode ser algo gloriosamente paradoxal.
Lutar pela história
A gente perde muito quando a história se perde para nós, e videogames são extraordinariamente suscetíveis à perda graças a sua dependência técnica por hardware em constante substituição. O presente estágio da Indústria sai de uma apatia em relação à sua história para a pura hostilidade anti-histórica. Sustentar a narrativa de um progresso tecnologicamente linear inevitavelmente envolve cagar para o passado (existem alguns poucos jogos antigos escolhidos a dedo para continuarem acessíveis, mas são exceções que comprovam a regra). A emulação é um recurso vital, sempre na margem da lei (observe as ações legais da Nintendo), Internet Archive está sob ataque, e a Disney distorce as leis de direitos autorais para preservar seu controle sobre a mídia. Resenhas e longplays de jogos antigos difíceis de jogar são um trabalho vital e valoroso pelo qual eu sou realmente grata. Me lembro agora de ter aproveitado muito o trabalho abrangente de Nitro Rad jogando platformers 3D, e as resenhas retrô de Cannot Be Tamed. Veja também: a Video Game History Foundation.
Bibliotecas públicas poderiam ser aliados vitais nesse caso. E se as bibliotecas facilitassem o acesso a tecnologia obsoleta ou softwares de emulação, garantindo que se pudesse jogar, pesquisar ou registrar partidas de videogames atigos? E se criadores pequenos ou estúdios extintos recebessem subsídio ou apoio para preservar seu próprio trabalho? As decepcionantes respostas institucionais ao Gamergate teriam sido diferentes se o conhecimento e o respeito pelas contribuições históricas de pessoas não brancas, mulheres e queer fossem parte inseparável da estrutura do videogame e de seus espaços? Seria assim tão fácil aceitar o modelo AAA como o ápice da tecnologia se nós contextualizássemos a complexidade impressionante de jogos do passado como Dwarf Fortress ou as séries Wizardry e Ultima - complexidade tecnológica que não seria possível se os jogos estivessem de acordo com as prioridades do AAA? (Falando um pouco demais aqui, já que nunca joguei esses jogos. Veja também: trabalhos recentes com Dwarf Fortress). Veja também: The Spriter's Resource e seus sites afiliados.
Expandir o financiamento público das artes
Eu não entendo muito disso, mas... deveria ter mais disso! Vejo isso acontecendo com mais frequência fora dos Estados Unidos.
Organização trabalhista
Nós podemos tornar nossos estúdios cooperativas. Podemos formar sindicatos. Esses sindicatos precisam de interseccionalidade até a raiz (veja os eventos recentes envolvendo a GWU internacional). Que tal poder duplo? Muitos estúdios pequenos poderiam estabelecer redes de apoio. Poderiam integrar suas audiências, se promover mutuamente, construir poder coletivo para não se deixarem ocultar pela sombra das corporações. Mas eu não sou uma expert em organização do trabalho, busquem orientação com quem conhece mais de perto.
Recursos colaborativos e abertos
Por exemplo: The Open Source Afro Hair Library, Open Game Art, o trabalho prolífico em música CC0 de Rrrrrose Azerty e o a comunidade Free Music Archive.
Dar dinheiro
Apenas Jogue!
Jogue algo totalmente aleatório no itch.io (ou outro site mais centrado na comunidade) sem esperar por recomendação de alguém. Elogie ou pague o desenvolvedor caso goste do trabalho!
Conclusão
Obrigado por dedicar um tempo a esses pensamentos! Espero que eles sirvam pra atiçar seus pensamentos e que todos possamos aprender uns com os outros. Sinta-se livre para entrar em contato comigo no twitter ou pelo e-mail: marinakittaka@gmail.com
Referências
[1] Estive refletindo sobre trauma enquanto lia vários livros como The Body Keeps the Score: Brain, Mind and Body in the Healing of Trauma, de Bessel van der Kolk e Sacred Wounds: A Path to Healing from Spiritual Trauma de Teresa B. Pasquale.
[2] Esta é uma citação que achei útil do The Self-Compassion Skills Workbook: A 14-Day Plan to Transform Your Relationship with Yourself by Tim Desmond
[3] Do capítulo Emergent Strategy em Fractais (p. 53)
[4] Body-to-Body Intimacy: Transformation Through Love, Sex and Neurobiology de Stella Resnick (p. 19)
Leituras relacionadas
- "The Nostalgia Question" e Feminist 8-bit Game Hacking de Rachel Simone Wil. http://peerproduction.net/issues/issue-8-feminism-and-unhacking-2/art-essays/issue-8-feminism-and-unhackingpeer-reviewed-papers-2/ [adicionado em 26/6/20].
- How to Do Nothing (2019) de Jenny Odell apresenta uma porção de pensamentos interessantes sobre como processamos cognitivamente o mundo moderno.
- 'Gamers' don't have to be your audience. 'Gamers' are over. de Leigh Alexander (2014).
- Reflections on Rachel Carson and the sense of wonder da psicóloga Karin Arndt.
- Precarity and Why Indie Game Developers Can't Save Us from Racism de Sam Srauy (2019).
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