terça-feira, 17 de dezembro de 2013

CONTRA A IDENTIDADE GAMER


Eu não reconheço o gamer como uma identidade válida ou benéfica para a cultura do videogame. Acredito em jogadores, pessoas diversas, indivíduos com suas motivações particulares que exercem uma prática em comum, que é jogar. Se formos traduzir para o inglês, falaremos de "players". Quando falamos em gamers, falamos de um conjunto de condutas e características que são próprias de um grupo identitário - gamers não são só pessoas jogando videogame, são aquelas pessoas que jogam videogame. E é uma identidade baseada em consumo: o gamer é o público-consumidor de um nicho da indústria cultural, é o consumidor médio de videogame. Ser um gamer corresponde a assumir trejeitos e responder às expectativas criadas sobre essa identidade.

Os grupos identitários podem ser positivos se forem parte de uma movimentação mais ampla, intencional e de dignificação de um grupo marginalizado e estigmatizado. Mas essa dinâmica é a positivação de uma identidade que já está construída, é a subversão dos valores negativos atribuídos a ela num contexto de hierarquização dos grupos. O branco sobre o negro, o heterossexual sobre o homossexual, o homem sobre a mulher, o europeu ou norte-americano sobre o latino-americano, só para citar alguns exemplos mais evidentes. São também identidades de validade questionável? Talvez (embora não caiba aos privilegiados fazer esse tipo de consideração), mas são plenamente justificáveis a partir do momento em que a adesão das pessoas a essas identidades fortalece a defesa de uma característica ou estilo de vida negativizado/marginalizado/estigmatizado/posto como inferior numa ordem social hierárquica. Definitivamente não é o caso dos gamers.

Homens brancos jovens de classe média são o público preferencial da indústria do videogame, isso não me parece nem digno de polêmica, e acho que há consenso sobre não estarmos falando de um grupo marginalizado. Não à toa, a mulher é permanentemente inferiorizada na cultura gamer: a "fake geek girl" é um perfeito exemplo. Ninguém quer "jogar como mulherzinha" ou perder num jogo para uma mulher. Ao mesmo tempo, a "mulher que joga" é objeto de desejo de todo gamer, e tê-la como namorada é o equivalente a um troféu, como uma raridade. Se uma mulher se aproxima da identidade gamer, deve responder a uma avaliação muito mais incisiva sobre sua bagagem cultural: por ser mulher, deve compensar essa "falha" com um repertório impecável. Se cometer o crime de não conhecer determinado personagem ou não dominar algum assunto canonizado entre os gamers, é apenas uma mulher fingindo ser o que não é para chamar a atenção dos homens.

Como parte da indústria cultural, a lógica do videogame é a mesma: afunila-se a riqueza da linguagem a cada geração, ampliando as possibilidades de sucesso (é mais fácil que as pessoas comprem impulsivamente o que responde às suas expectativas mais imediatas) e reduzindo os riscos de fracasso (é mais difícil que um público que está acostumado a um tipo de experiência se permita viver coisas que pareçam estranhas). Para que se tenha uma base de consumidores estável, é interessante que se estabeleça um grupo identitário a partir de um público-consumidor, constituindo uma muralha contra a inclusão social e a expansão das possibilidades da linguagem. Pra que diversidade quando uma monocultura é mais lucrativa e oferece riscos menores para o modelo de produção e difusão macro-econômico e extremamente centralizado que temos? As pessoas não desejam experiências de jogo, mas capital cultural para serem reconhecidas como parte de um grupo. Transforma-se gradativamente a cultura do videogame num universo auto-referencial que repele aqueles que não estão sendo visados como público, afunilando cada vez mais as possibilidades estéticas, narrativas e socio-políticas da linguagem, bem como o alcance que ela pode ter para além dessa esfera de consumo.

Se aquele que joga videogame é gamer, e se o gamer é um homem branco jovem de classe média que vai jogar aquilo que já está acostumado a jogar, e que lhe é oferecido por um mecanismo industrial de priorização do lucro, então para onde vão todas as outras pessoas que poderiam desfrutar do que o videogame poderia ser? São "falsos gamers"? São "posers"? A identidade gamer como a centralidade do videogame acaba subordinando a linguagem às expectativas majoritárias desse grupo identitário (que são produzidas artificialmente - porque o consumo compulsório é um adestramento da sensibilidade, uma educação para a inércia) definindo o que pode ser aceito ou recusado como videogame (ou quem pode ser aceito e recusado como gamer) numa lógica hierárquica de produtor-consumidor/ativo-passivo/homem-mulher/entre outras ficções absurdas. O cliente tem sempre razão, desde que ele continue sendo o mesmo idiota que sempre foi, e continue agindo como um morto-vivo sem vontade própria. Videogame de verdade tem que ser assim, tem que ser assado. O gamer é a figura mais estúpida do videogame, não há por que insistirmos nisso. O videogame só será das pessoas quando os gamers estiverem mortos e enterrados, quando não existir mais o videogame de verdade.

A propósito, poderíamos estar falando sobre nerds.

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