sábado, 30 de agosto de 2014

LUDISMO E O DESMANCHA-PRAZERES


Existe um grupo na história da industrialização que me fascina: os luditas. Não deriva do latim ludus, mas de acordo com a narrativa mais aceita, vem do nome de um velho tecelão revoltado que se chamava Ned Ludd. Ele teria destruído uma ou várias máquinas para se vingar do patrão, algo assim - a história é um tanto obscura e nunca me atrevi a ir muito longe. Mas o homem serviu de inspiração para outros operários que viriam a fazer o mesmo no começo do século XIX. Desgostosos com as transformações no mundo do trabalho, quando a figura do artesão estava sendo soterrada pelo avanço tecnológico (que prometia anular obstáculos ao lucro como a preguiça, o desejo e a imaginação), os luditas encarregaram-se de moer as máquinas que os moíam. Não tardou para que fossem violentamente reprimidos, dada a concreta ameaça que ofereciam à existência da indústria. Hoje os luditas podem nos parecer ingênuos, desprovidos de teoria, ou mesmo conservadores para aqueles que acreditam no progresso da máquina como algo invariavelmente positivo - mas a verdade é que quase conseguiram estragar tudo, e só não o fizeram porque a forca e as prisões não tinham sido destruídas primeiro. Johan Huizinga, em seu Homo Ludens, fala de pessoas que agem assim no jogo e na sociedade enquanto jogo expandido. São os "desmancha-prazeres"*.

O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um "desmancha-prazeres". Este, porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha-prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros. [...] Torna-se, portanto, necessário expulsá-lo, pois ele ameaça a existência da comunidade dos jogadores.
[...]
Todavia, frequentemente acontece que, por sua vez, os desmancha-prazeres fundam uma nova comunidade, dotada de regras próprias. Os fora da lei, os revolucionários, os membros das sociedades secretas, os hereges de todos os tipos têm tendências fortemente associativas, se não sociáveis, e todas as suas ações são marcadas por um certo elemento lúdico.

Embora seja improvável uma relação direta entre Ludd e a palavra ludus, a semelhança é uma coincidência divertida. Aqueles que "não sabem brincar" ou que simplesmente não foram consultados sobre o teor da brincadeira e, portanto, se recusam a participar dela, só podem participar do jogo destruindo sua ilusão, para que finalmente tenham a possibilidade de não jogá-lo. Um tabuleiro de xadrez sem peças é um jogo impossível, e os luditas perceberam isso.

Anna Anthropy define um jogo como "uma experiência criada por regras" - mesmo que não estejamos falando de jogos de uma maneira restrita, mas ampliando seu conceito como analogia a diversos campos da sociedade, a definição continua funcionando. Huizinga também explora essa amplitude do jogo, e ao longo do livro podemos conhecer sua interpretação do jogo na música, do jogo na poesia, do jogo no direito, do jogo nas religiões, na guerra, na arte, na filosofia... enfim, como sugere o subtítulo: o jogo como elemento da cultura. Como ele mesmo enfatiza em algum momento do livro, não "na cultura" como algo que está nela mas poderia não estar, mas "da cultura" como um dos elementos que a constituem, e sem o qual a cultura não existiria. A criança conhece as regras do mundo físico ao jogar uma bola, assim como o músico deve conhecer as regras de seu instrumento para manipulá-lo de maneira a produzir os sons que deseja. Todavia, criança e músico devem primeiro querer jogar e poder fazê-lo.

A máquina e seus proprietários devem ter percebido, em algum momento, que os operários corriam o risco de se tornarem luditas assim que percebessem a miséria das próprias vidas. Fez-se necessário algo que substituísse o afeto, o belo e o sagrado - apenas conversas de boca cheia margeadas por apitos de fábrica não podem suprir a necessidade por relações humanas que todos nós temos, por mais que gostemos de fingir que não gostamos de pessoas. Trataram de inventar a indústria cultural, que tinha mais de indústria e menos de cultura, uma vez que era o exato da primeira e a imagem da segunda. As imagens da cultura podem assumir infinitas formas; virtualmente qualquer coisa, objeto ou troço pode ser a imagem da cultura - essa que seria em essência uma dinâmica resultante da preguiça, do desejo e da imaginação. Com sorte, dentro de alguns anos, as pessoas esqueceriam como se faz pra imaginar, e aceitariam de bom grado que alguma outra pessoa fosse paga para imaginar por ela. Também a preguiça poderia se tornar inofensiva caso fossem garantidos inúmeros troços que facilitam a vida, como comidas que se preparam sozinhas, máquinas que preparam as comidas ou pessoas que são pagas para preparar as comidas e arrumar as máquinas. Quanto ao desejo, poderia ser fabricado também, e se chamaria publicidade - uma vasta coleção de troços como placas, videozinhos e panfletos ensinando as pessoas o tipo de outros troços que deveriam desejar. Um grande jogo de acumular troços.

Não me entendam mal, não acho que objetos inanimados sejam algum tipo de inimigo. Nem os luditas pensavam assim, estejam certos. O mal está na centralidade dos objetos inanimados como totem da cultura. Os objetos devem servir à experiência, devem estar submetidos a algo que os transcende. Assim como o trabalho sob a máquina industrial se tornou "servir à máquina", a máquina industrial de produzir objetos culturais transformou as pessoas em consumidoras desses objetos, num jogo de permanente expansão: mais objetos para ir mais longe para que mais pessoas os acumulem, uma dinâmica que vem de fora para dentro, de cima para baixo. A máquina deve estar incorporada ao ciborgue, e não o contrário. Ninguém quer ser o Robocop, pois isso seria o mesmo que deixar de ser.

A onipresença das indústrias culturais mais poderosas, resultante desse processo, é uma realidade com a qual devemos saber lidar. Não se trata de entrar num delírio que acredita ser possível viver a despeito da indústria cultural, mas de submeter os troços novamente à experiência. É importante que articulemos culturas populares locais de produção e fruição de videogame que se desenvolvam, cada vez mais, de maneira autônoma em relação ao eixo Japão-EUA, sem ignorar o inevitável diálogo com essas fontes.

Talvez destruir consoles de última geração na loja de videogames até possa configurar uma sabotagem interessante - muito mais simbólica do que uma ameaça concreta - e também mais fiel à forma da ação histórica dos luditas, mas estragar o jogo passa mais por negar as regras do que por quebrar o tabuleiro. Para desmanchar o jogo do videogame como o conhecemos, é preciso que paremos de competir segundo as mesmas regras e as mesmas concepções de vitória. É necessário que nos tornemos luditas. É necessário que nos tornemos desmancha-prazeres. É necessário que nos tornemos inimigos dos jogadores, e que eles queiram nos expulsar.


*Inicialmente pensei em trocar o termo por "estraga-prazeres", muito mais usual, para usar aqui no texto. Mas depois concluí que "desmanchar" tem mais a ver com transformação, assim como se desmancha o controle de Playstation que jaz no topo deste blog.

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