sexta-feira, 11 de setembro de 2020

QUE PAPO É ESSE DE "GAME DESIGN NÃO EXISTE"?


À guisa de introdução: vai tomar no cu tranquilo quem é de direita e quer determinar quais devem ser as conversas e as tarefas da esquerda no videogame. Nunca fiz questão de fazer ponte com liberal e não é hoje que vou querer dialogar com pau no cu, não tenho nada a perder, sempre fiz meu corre por fora com quem também tá na margem e me orgulho de nunca ter precisado fazer concessões. Vai ter que conviver com o meu trabalho e com os meus hot takes também, se fode aí. Tira print, faz fofoca, esculhamba, mas aguenta que tem mais. Também odeio vocês mas faz parte. Total respeito a quem ainda tenta o diálogo, mas eu tou legal de dialogar com cobra. Agora vamos às ideias.

Confesso que me impressiona a falta de complexidade na leitura do tweet que foi comentado por mais de vinte dias nas redes sociais. Estamos tão acostumados a um senso de humor com três, quatro camadas de ironia, mas somos burros incorrigíveis quando se trata de um perfil de esquerda sendo ouvido. Não se trata de burrice, é claro: é muito mais uma vontade de crença que faz a gente preferir acreditar no absurdo (vivemos na época das mamadeiras de piroca, afinal) do que tirar do absurdo uma proposição mais profunda. Somos burros quando interessa, mas também muito sofisticados quando interessa. Estou escrevendo este post porque acho que a coisa viralizou o suficiente pra ter gente que topou com a história de forma mais atravessada, que já chegou quando quilos de memes e venenos soterravam qualquer possibilidade de discussão genuína, e acho que merecem que eu me debruce um pouquinho melhor sobre minha própria provocação - estou dando um voto de confiança pro pessoal que embarcou distraído no bagulho.

Vamos tirar a interpretação mais simplória do caminho: "game design não existe" não significa "videogames não existem", tampouco "game designers/profissionais de game design não existem", e também não significa "game design não existe como disciplina/campo de conhecimento". Tudo isso, obviamente, existe. Assim como existe a arte como os artefatos, trabalhos e conhecimentos que se realizam em contextos históricos em que o conceito de arte existe, e mesmo assim podemos nos questionar se existe arte sem que tenhamos que nos jogar na frente de um caminhão. É um exercício filosófico que nos força a olhar de outra maneira para o que fazemos e o modo como fazemos. Então fiquem tranquilos: não estou sugerindo que um suicídio em massa de game designers é desejável.

Eu sou mais um impossibilista do que um possibilista. Não tenho compromisso algum com a manutenção das coisas como elas são, e compreendo na pele que estamos presos - até certo ponto - às coisas como elas são.

O que rola parece ser o choque de duas culturas de videogame: uma parte mais profissionalizada (ainda que precarizada), que compreende o videogame como mundo do trabalho, que circula nas cidades onde os empregos são mais abundantes, os contatos internacionais são mais fáceis e as convenções mais firmes, uma cultura de videogame não apenas melhor conformada ao capitalismo como também conformista, no sentido de que se defende de um mero questionamento dessa ordem vindo de lugares que não são as posições de poder que determinam como a indústria (ou proto-indústria, ou indústria em desenvolvimento, ou arremedo de indústria) será ou deixará de ser, ou seja, localiza o inimigo na margem e não no topo; A outra parte seria o videogame como contracultura, onde se experimentam modos de fazer e princípios alternativos que não assumiram compromisso (seja por falta de necessidade ou por falta de oportunidade de integração, o que meio que dá no mesmo) com o mundo do trabalho, com o mercado ou com as disciplinas e cargos que fazem a indústria funcionar, embora realize e produza coisas que possam ser reconhecidas e (re)nomeadas tardiamente por essas disciplinas.

E aí tem uma relação desses dois mundos que é a seguinte: o mundo do trabalho, por estar melhor conformado ao capitalismo, tende a impossibilitar mundos alternativos (porque empurra a margem pra fome - e aí pro trabalho alienado em outros campos que não o videogame, o que acaba com o tempo de seus atores - e o videogame profissionalizado pro trabalho alienado no próprio campo do videogame). A margem tende a antagonizar com o mundo do trabalho porque entende que, ao mesmo tempo em que não há emprego para muita gente lá dentro - e muito menos para indivíduos de esquerda - não cabem coisas que são preciosas, que são nexos culturais importantes, e que estão sujeitos à eliminação nesse processo de integração ao mundo do trabalho. Percebam que o antagonismo não se dá num nível intra-classe, de trabalhador contra trabalhador, e sim entre os atores marginalizados e o sistema que os ameaça ora com a morte cultural, ora com a fome. O que ocorre é uma incapacidade sistêmica que a cultura de videogame como trabalho tem em absorver o videogame como contracultura sem aleijar o segundo. O que resta ao videogame como contracultura, para que continue existindo na sua integralidade, é realizar-se contrariando ou pelo menos sendo diferente das tendências e princípios que regem a narrativa (e o modelo de produção que dá uma razão histórica pro surgimento dessa narrativa) dominante.

Dizer que "game design não existe" não tem a ver com o trabalhador que conseguiu um emprego de game designer e aí temos que matar ele na paulada. "Game design não existe" sequer é uma afirmação que se basta, ela tem o mesmo valor de afirmações como "deus não existe" ou "arte não existe", ou seja: não é a verdade que está sendo dita, é a possibilidade, é o "se pá dá pra ser diferente". Questionar a existência de coisas tão normais é abrir espaço para a imaginação, nos convidar a imaginar essa não-existência, considerar a historicidade da coisa dita inexistente - pois se é possível que não exista, talvez tenha sido inventada, e talvez possa ser desinventada ou reinventada. E, se não existiu desde sempre, surgiu por quê? Para quê? Fazer esse tipo de pergunta é, na verdade, o que define as coisas questionadas como campos de conhecimento (que são sempre campos de disputa, porque o conhecimento não é uma verdade à qual nos acomodamos, é uma construção permanente). Temos que abrir espaço nas nossas cabeças para os paradoxos e contradições, caso contrário estamos abrindo mão de pensar. E, se a gente desiste de pensar, o fascismo volta novamente e mais uma vez. Ou melhor: não vai embora nunca mais, já que ele está aí firme e forte.

A confusão se dá porque estamos com muita preguiça de imaginar, tão desesperados que nos agarramos de corpo e alma aos bicos miseráveis que nos restaram pra ganhar o pão. Os trabalhadores identificados num nível pessoal com o cargo que ocupam (já que trabalham 24h por dia e portanto não vivem, sua vida é ocupar o cargo e se dedicar integralmente à disciplina quase como se a empresa fosse um monastério) acabam se ofendendo porque questionar o trabalho é questionar sua existência, porque no capitalismo as pessoas só existem para trabalhar. Trabalhar para os outros, para a indústria, para o raio que o parta que pague o aluguel caro do apartamento pequeno e a comida inflacionada (e nenhum livro). O inimigo não é "aquele perfil de esquerda sempre fazendo hot takes", saca?

Faça um exercício. Troque "game design não existe" por "game design não descreve e não precisa descrever o videogame que eu faço, que não tem compromisso com essa disciplina - que possui historicidade, não eternidade - e com o mundo do trabalho a que ela serve como ferramenta organizadora".


P.S.: Sobre design de uma perspectiva de esquerda, recomendo ouvir o podcast Clandestina, em especial o episódio "Design, precarização do trabalho e caminhos anticapitalistas pt. 1".

Um comentário:

  1. Um negöcio absurdo nesse campo de game design e a suposta isenção que se assume, como se fosse um tema meramente de tecnicas que funcionam ou não. É tecnicista, ahistórico, e por tanto não aberto a uma critica relacionada ao seu papel social. Você pode, ou deveria poder, do contrário tem algo muito errado com essa area de conhecimento, existur dentro dela sem abandonar a crítica radical ao próprio campo. Aliás, frequentemente é aßim que essas áreas de conhecimento se expandem e ganham relevancia intelectual. Um exemplo familiar a mim: artistas questionando o que é arte, se ela existe, sua função, e demolindo o status do artista existem pelo menos desde Duschamp, e mesmo xingados por muitos, existem e fizeram a área de arte se complexizar e questionar seu próprio papel no mundo. Então, quem está dentro do mercado e/ou em posição acadêmica de formador do campo tem de mirar a arma da crítica pra própria cabeça, sempre, e extrapolando esquemas funcionalistas de "isso serve e aquilo não",mas questionar "pra quê, pra quem serve?", e sempre que possivel demolir bases. Se nao a coisa fica parecendo aquelas formulas acriticas de Administração de Empresas, um monte de grosélia acrítica e que foi estabelecida sem se questionar as condiçõesnhistóricas que levaram às tais escolhas. Toda escolha é polītica, e isso nunca foi tão verdade quanto no presente. Dito isso, acho muito pertinente tua provocaçâo.

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