domingo, 15 de dezembro de 2013

MANIFESTO SCRATCHWARE

Adaptação do Manifesto Scratchware, por Pedro Paiva, a partir de tradução de Janos Biro e consultas ao original.


Já é um texto bastante datado (tem mais de dez anos), mas mesmo assim importante pra se pensar o videogame como cultura, como um agregador social, como parte do sistema. Não concordo inteiramente com ele, e inclusive alguns enxertos que eu mesmo fiz já não correspondem com a minha posição atual. Mas aí está, espero que não se prendam muito ao manifesto mas possam aproveitar dele alguma idéia transformadora.


Fase um: Prelúdio para a revolução

Os jogos eletrônicos estão sendo arruinados por um sistema que não faz mais sentido.

Um sistema que, ao invés de potencializar os jogos eletrônicos como um suporte para a criatividade, suprime essa criatividade. Reprime a inovação, ao invés de encorajá-la. Prioriza produtos de fácil vendagem, alta margem de lucro, e veta idéias que possam oferecer riscos para as empresas. Ao invés de recompensar aqueles que têm sucesso, os penaliza com orçamentos de desenvolvimento tão altos e royalties tão baixos, de forma que os verdadeiros autores dos jogos não são devidamente recompensados. Ao invés de dar crédito àqueles que merecem, ela procura associar sucesso com a máquina corporativa. O autor do jogo é um mero funcionário entre tantos em apenas mais uma fábrica de lucro. Esqueça suas idéias, esqueça sua criatividade, eles querem currículos e nulidade crítica.

Está na hora da revolução.

Se você for a uma livraria, você verá dezenas de milhares de títulos, de centenas de autores diferentes, com estilos diferentes de escrever e histórias de gêneros e estruturas diferentes, das épocas mais remotas até lançamentos da semana passada. Numa loja de discos, você verá milhares de discos também com enormes variações entre si. Numa loja especializada em videogames, você vai encontrar cerca de 40 títulos, que serão lançamentos da semana passada distribuídos pelas mesmas três empresas de sempre. Dez deles serão cópias de God of War, outros dez de World of Warcraft, e os 20 que restarem serão jogos de tiro em primeira pessoa com gráficos mais realistas do que a realidade, e que não vão rodar no seu PC se você não comprar a nova placa de vídeo pauzuda que acabaram de lançar. Nas lojas de livro e de discos, você vai ter facilidade pra encontrar pessoas que conhecem literatura/música e que pesquisam com paixão as vertentes que mais admiram. Na loja de videogames, você vai encontrar um bando de nerds babões brigando pra ver qual a empresa é a melhor, entre aquelas três de sempre (isso também acontece nos fóruns da internet). E a melhor empresa, na opinião dos nerds babões, será sempre a que vendeu mais.

E enquanto a loja de videogames é monopolizada pelos tais 40 lançamentos imperdíveis, dezenas de milhares de jogos são lançados todo ano. E pasmem: continuam vivos ano após ano, indiferentes aos vícios evolucionistas da indústria. Se é jogável e tem qualidades, então está vivo e merece ser jogado.

Os jogos que preenchem esses 40 espaços privilegiados são aqueles nos quais as três empresas de sempre investiram milhões em publicidade e propaganda (ou em poluição, como preferirem chamar). E todo executivo sabe que dar a luz verde para algo que não venda significa demissão. Ninguém vai despedi-los por seguirem a tendência do mercado. Por mais brochante que isso possa ser pros jogos eletrônicos como uma cultura, é exatamente isso o que os executivos da indústria do videogame devem fazer.

Uma área que já foi um terreno artístico inovador e excitante se torna um antro de imitação e chatice. Devemos nos permitir falhar. Evitar a falha a qualquer custo é se trancar no reino da mediocridade. Fazer jogos esquisitos é bom, desde que sejam bem feitos. A quantidade de aceitação de um jogo não é o critério absoluto que define sua qualidade.

Um projeto que custa milhões para as empresas e seus investidores deve ter um time de desenvolvimento de dez, vinte, trinta ou mais pessoas, de preferência sempre mais. Deve levar anos pra ser concluído. Deve envolver tantas pessoas, tanto trabalho e burocracia estafante até que não sobre espaço para a individualidade dos criadores. Essas pessoas convivem com a ilusão de estarem trabalhando com "algo de que gostam" (isso quando gostam), embora o fruto desse trabalho seja atribuído às empreas, e seus chefes reconheçam apenas o lucro adquirido pelas vendas do produto, cagando e andando pra qualidade do trabalho que foi feito.

Dizemos: Basta! Chega! Não tem que ser assim.

Você precisa de trinta pessoas talentosas para fazer um jogo? Mentira. Richard Garriott programou Ultima sozinho em questão de semanas, só pra citar um dos títulos mais influentes da história do videogame. Chris Crawford desenvolveu Balance of Power sentando-se no seu Mac. Chris Sawyer criou RollerCoaster Tycoon, um dos jogos mais vendidos do mundo, quase inteiramente sozinho.

O que você precisa para criar um jogo? Duas pessoas e uma cópia do Code Warrior.

Você precisa de milhões para criar um grande jogo? Bobagem! Até 1991, um jogo de computador típico gastava menos de 200 mil dólares para ser desenvolvido. NetHack, ainda um dos melhores jogos já criados, foi desenvolvido por nada, por um grupo de desenvolvedores como um trabalho de amor em seu tempo livre. TreadMarks, que foi finalista do Indie Games Festival, foi desenvolvido de improviso por um grupo que queria comprar doces com a mixaria de um pequeno jogo que eles colocaram na internet.

O que você precisa para financiar um jogo? Comida e trocados para pagar a conta de luz.

Você precisa imitar produtos existentes para diminuir o risco de publicação? Absolutamente não. Você pode e deve inspirar-se pelo trabalho de outros autores, mas trazendo a sua individualidade e os seus anseios, não as neuroses de um sistema viciado. Inspiração é diferente de imitação. Os produtos que se tornaram sucesso sempre foram inovadores, mesmo que a similaridade com títulos anteriores seja perceptível. Para inovar é preciso partir de algo reconhecível. Prince of Persia, Commander Keen, Pitfall, Another World, Donkey Kong, todos esses jogos possuem uma linha em comum, uma rede de inspirações enriquecedora que deve ser revisitada por qualquer autor de jogos contemporâneo. Imitar é superficializar. O bom músico deve ouvir mais discos, e o bom escritor deve ler mais livros. O autor de jogos não deve ficar preso aos 40 Winning Eleven do último ano, esperando que numa simples imitação consiga criar algo com qualidade.

E quanto à publicidade? O estreito canal de vendas força milhões em gastos promocionais? Então acabe com isso. Não há prateleiras na internet. Faça jogos, faça amigos, faça jogos com seus amigos, divulgue seus jogos, jogue os jogos dos seus amigos e então faça mais alguns jogos. Sem desespero. Apenas faça o que sente que deve fazer e se preocupe com as prateleiras mais tarde.

Você precisa de centenas de milhares de vendas para recuperar os custos? Sim, sob o modelo disfuncional que rege hoje. Mas se você desenvolve jogos de maneira independente, seus custos são drasticamente menores.

Todos os computadores hoje em dia estão conectados por tubos que transportam qualquer tipo de conteúdo virtual, incluindo jogos eletrônicos. Por que ainda estamos copiando todo esse conteúdo virtual para mídias físicas, e embalando-os em caixas de papelão cheias de ar, enfiando-as em navios e caminhões para que atravessem o mundo consumindo litros e litros de combustível, em vez de usarmos os malditos tubos?

Morte à EA e à Vivendi! Sua submissão aos revendedores, sua falta de entendimento do que constitui um jogo, sua completa falta de senso estético, sua timidez, suas tentativas de enforcar competidores e sua inaptidão em fazer os desenvolvedores se entenderem nos levaram a este impasse. Vocês são dinossauros, sua estupidez apenas estraga o que seria um campo de originalidade.

Morte à Sony, Sega, e Nintendo! Sua insistência em controlar cada passo do desenvolvimento, de garantir que nenhum produto se afaste da sua estética corporativa, seus royalities de plataforma absurdamente altos, os altos preços de suas plataformas de desenvolvimento licenciadas, suas caixas com controles completamente inadequados para qualquer jogo de qualquer profundidade fazem vocês irrelevantes para qualquer um que queria desenvolver jogos de mérito duradouro.

Morte à indústria dos jogos eletrônicos! Vida longa aos jogos eletrônicos!

Não queremos ser nem ver desenvolvedores que façam jogos apenas para pagar suas contas, definhando em suas depressões enquanto a máquina corporativa se alimenta de seu trabalho. Não queremos ser nem ver desenvolvedores que encaram os jogos como apenas um degrau abaixo de Hollywood. Queremos ser e ver desenvolvedores como:

Chris Crawford, que já foi considerado o maior criador de jogos do mundo, agora deixado de lado por um mercado que não sabe como vender qualquer coisa que não se encaixe nas suas tediosas categorias.

Dani Bunten, que entendia a importância da socialização nos jogos muito melhor do que as empresas com suas políticas hostis. Rejeitada pela indústria porque era transexual.

Richard Garriott, o inventor virtual do RPG de computador, jogado fora como uma camisinha usada por um mercado que pensa ter sugado tudo que podiam dele.

Julian Gollop, lançado à obscuridade, não teve acesso aos frutos de seu trabalho por causa de uma indústria que valoriza as marcas e usa o talento como mercadoria.

Will Wright, que de alguma forma ainda consegue passar sua visão, apesar de todos os obstáculos que o sistema coloca em seu caminho.

Como eles fizeram, nós podemos fazer. Do nosso modo.

Desenvolvamos para plataformas abertas, evitando os consoles particulares.

Trabalhemos no fermento de nossas imaginações, lutando para produzir jogos de mérito duradouro. Jogos que façam as pessoas dizerem "Este jogo foi importante pro desenvolvimento dessa magnífica forma de expressão que chamamos de videogame".

Vamos explorar o infinito potencial plástico dos nossos jogos e as possibilidades da programação moderna,  que tantas ferramentas nos oferece. Vamos transformar a relação entre o videogame e a sociedade, procurando novas formas de pensar, fazer, jogar e compartilhar jogos.

Vamos criar jogos que nós gostaríamos de jogar, porque nós somos jogadores. Não somos qualquer pateta com um diplominha em administração querendo ganhar grana fácil com advergames na rede social da moda.

Vamos trabalhar em grupos pequenos, buscando coesão naquilo que fazemos, sem medos ou interferência de empresas. Queremos jogos autorais, jogos com identidade.

Vamos construir o nosso próprio mercado, não subornando revendedores para que estoquem nossos produtos ou comprando capas de revista, mas distribuindo os nossos jogos na via pública da internet e conquistando jogadores através da excelência dos nossos jogos. Vamos estabelecer o nosso próprio sistema, alimentando uma comunidade de pessoas apaixonadas e comprometidas com os jogos. Joguemos, desenhemos, programemos e escrevamos videogame!

Vamos criar, pela força da nossa vontade e do nosso trabalho, a revolução dos jogos independentes. Vamos fazer o que os selos independentes fizeram pela música e os fanzines fizeram pela literatura.

Rejeitamos a máquina. Rejeitamos os vendedores. Rejeitamos as grandes listas de pagamentos. Rejeitamos as caixas de ar de 50 dólares que cobram a gasolina dos caminhões. Rejeitamos pagar por espaço nas prateleiras. Rejeitamos executivos e produtores que não sabem o que vendem. Rejeitamos o procedimento padrão e queremos encontrar novas formas de criar.

Vamos virar os jogos de cabeça para baixo. As forças da revolução estão em marcha!


Fase dois: Conheça seu inimigo

Poder e dinheiro na indústria do videogame

O que há de errado com essa indústria? Por que os jogos são lançados cheios de bugs, por que muitos jogos bons não tem o devido reconhecimento e por que os jogos que jogamos hoje parecem os mesmos que jogávamos a cinco anos atrás, embora os supostos avanços tecnológicos proponham um mundo de inovações? Para entendermos a origem desses sintomas e encontrarmos maneiras de mudar essa realidade, precisamos saber como flui o dinheiro na indústria do videogame, e quem detém o poder e o dinheiro nessa hierarquia que coloca os criadores de jogos na escala mais baixa da pirâmide.

A indústria do videogame é como a indústria do cinema e da música, compartilhando seus vícios e lógica de funcionamento. As três, além de outras como os quadrinhos e a televisão, são parte do que podemos chamar de "indústria do entretenimento". O objetivo primário de uma indústria não é gerar benefícios para a sociedade, mas gerar produtos de consumo para a sociedade que, comprando esses produtos, beneficiará a indústria. A indústria é composta por agentes econômicos (as corporações, como Nintendo e Sony) lideradas por pessoas que estão fazendo o que podem para ganhar dinheiro para si mesmas e para os agentes de mercado (aquelas lojas repletas de nerds babões e caixas de papelão cheias de ar), ganhando quanto dinheiro puderem dos consumidores, e pagando o mínimo que puderem para as pessoa que fazem os jogos. O objetivo da indústria é manter uma margem de lucro crescente. Isso significa, cada vez mais, ampliar o público-alvo dos produtos e martelar propagandas na cabeça da sociedade, forçando as pessoas a consumirem produtos cada vez mais descartáveis e estéreis de personalidade, e fazendo-as acreditarem que estão consumindo algo cada vez melhor. O crescimento econômico da indústria do videogame é inversamente proporcional ao seu crescimento enquanto cultura, arte ou manifestação criativa.

Os vampiros de Wall Street

Se o mundo econômico e político fosse um jogo de tiro em primeira pessoa, estaria infestado de mortos-vivos. E de certa forma é realmente assim, o mundo como o conhecemos hoje é controlado por uma legião de vampiros. Por que será que a Exxon, a Microsoft, a Monsanto e os seus amigos fazem tantos comerciais falando sobre o quanto eles são bons? É porque eles precisam esconder a verdade de nós, precisam nos seduzir como Bela Lugosi fazia. As corporações são como os vampiros. E quais são as características dos vampiros? Primeiro, eles são imortais. Estranhamente, as corporações podem viver para sempre também. Morgan Bank, Ford Motors, e a General Electric, podem continuar funcionando eternamente. Outra característica dos vampiros? Eles vivem para sugar sangue. Quando você compra um jogo e percebe que se trata de um produto de péssima qualidade, a sensação é de que o seu sangue acaba de ser sugado - você foi seduzido pela propaganda e levou uma bela mordida. Quando você trabalha em um estúdio de uma corporação, e percebe que o seu potencial criativo está sendo ignorado ou castrado e o seu trabalho está sendo aplicado num produto de péssima qualidade, então o seu sangue também está sendo sugado. As corporações existem por um único motivo (e não acredite se elas disserem outra coisa): ganhar tanto dinheiro quanto elas puderem. E, no capitalismo, dinheiro é sangue. Não podemos viver sem. É como se fôssemos gado, mantidos vivos para que os sugadores de sangue obtenham de nós todo o lucro que quiserem. Eles tratam o planeta da mesma maneira também. O que é uma floresta devastada senão vampirismo corporativo em ação? O planeta é a Salem's Lot das corporações. Outra característica em comum: vampiros são difíceis de matar, e as corporações também. A Exxon derramou petróleo por todo o Alaska, mas continua firme e forte. A Union Carbide matou milhares em Bhopal, Índia, mas continua funcionando. Você pode até tentar processar uma corporação, mas elas contam com milhões de dólares e milhares de advogados para garantir que seus mestres continuem no controle. Bridgestone/Firestone fabricaram pneus de péssima qualidade, que mataram várias pessoas em acidentes de trânsito. Eles podem até se encrencar, mas você pode ter certeza de que a corporação vai continuar viva. Vampiros se escondem em covis, o covil dos nossos vampiros é em Wall Street.
Esses vampiros nos mantém controlados pelo salário. Eles criaram toda uma hierarquia de mortos-vivos, de zumbis a necromantes. Eles adoram nos dar a impressão de que também podemos ter o poder deles, faz parte da sedução, nós precisamos querer ser como eles. É essa ilusão que faz com que nos submetamos a um exagero de horas de trabalho estafante, uma ânsia por "crescimento" que se mostra irreal e sem sentido. Adiamos nossas vidas aguardando essa ilusão até que, um dia, acordamos sem perspectivas de futuro, como zumbis vivendo de restos.

E as condições de trabalho só pioram. Para manter ativo o efeito da sedução, palestras de incentivo e motivação são cada vez mais comuns. Lavagem cerebral para fazer os escravos amarem seus mestres vampiros com cada vez mais dedicação.

John Romero passou 18 horas por dia dormindo no escritório para tirar o Daikatana da versão beta. Seu sacrifício e dedicação ao interesse dos vampiros foi visto como um ato nobre, ele foi visto como um herói. Os programadores começaram a largar a escola, largar as namoradas, e literalmente se mudarem para os escritórios para manter prazos cada vez menores, por nenhum outro motivo senão o lucro dos vampiros.

“Aaaaaaaargh!” grita Shawn Green, enquanto joga seu teclado contra o chão. É meia-noite na Ion Storm, e os cubículos ainda iluminados. Green, de cabelos longos e camiseta preta, gesticula como o primata no início de 2001. Teclas rolam pelo chão como dentes perdidos.

Um programador do cubículo ao lado observa a cena e logo volta ao trabalho. “Nada como um pequeno alívio do estresse”, diz Green, ajeitando o cabelo.

Nada como um comportamento violento induzido por uma rotina insana. Qual deve ser o próximo passo? Espalhar os miolos pelo estúdio na tentativa de engolir uma bala de revólver em movimento?

Para sobreviver a uma rotina como essa, o programador precisa ser mais ou menos como um soldado numa guerra. E assim como os soldados, eles são convencidos com um discurso heróico e completamente falso sobre os objetivos da missão. O verdadeiro objetivo é manter o poder dos vampiros. Se fizerem bem, talvez recebam uma medalha.

Luke "Weasl" Whiteside é o mais novo projetista de fases a integrar a equipe do Daikatana. Luke se sente tão privilegiado de estar trabalhando na empresa, que há vezes em que nem vai para casa. Debaixo de seu gabinete há um colchão. Em algumas noites, ele apenas come alguns M&M's e vai dormir. Luke dizia “Eu me chamo de cogumelo porque estou sempre trabalhando no escuro. A escuridão ajuda a esquecer do mundo exterior. Depois de um tempo sua personalidade se adapta”. Depois de um tempo espancando uma criança, a personalidade dela se adapta de forma semelhante. A mesma obsessão e intensidade com que os programadores se entregam ao código se repete na obsessão que os jogadores terão ao jogar. Um ambiente de produção insano só pode criar jogos insanas. Programadores passam horas sem dormir para fazer um jogo, jogadores passarão horas sem dormir para jogá-lo. O ato de jogar se transforma em consumismo, compulsão.

Cravando uma estaca no peito dos vampiros

Ao contrário dos vampiros da literatura, a indústria nunca dorme. Sempre há alguém a alimentando, seja esse alguém um consumidor ou um trabalhador. Para que se quebre esse ciclo, o que devemos fazer é construir um circuito alternativo, que não seja hierárquico, mas igualitário. Devemos esquecer vícios da indústria como a ampliação de público-alvo em detrimento da qualidade do jogo, e a visão do videogame como um nicho de mercado. Devemos fazer jogos de acordo com nossos critérios, projetando neles a nossa individualidade, e agindo em conjunto com outros criadores de jogos e entusiastas para que possamos construir uma força coletiva. Em outras palavras: devemos transformar os jogos eletrônicos num movimento cultural. Devemos pensar em alternativas para a distribuição dos nossos jogos, fazer uso da internet e da sua enorme possibilidade de compartilhamento. Devemos recriar os espaços consagrados de videogame como os fliperamas e as lan-houses. Será que ainda temos estômago para jogar outro King of Fighters e outro Ragnarok? Por que não nos apropriarmos dos espaços físicos, reaprendendo com a internet a força do compartilhamento e levando essa força aos lugares que frequentamos? Talvez ainda não seja possível cravar uma estaca no peito da indústria, mas podemos começar tirando as estacas dos nossos próprios peitos.

Adaptação do Manifesto Scratchware - Fase 3, por Pedro Paiva, a partir de tradução de Janos Biro e consultas ao original. O manifesto foi escrito em 2000, já faz mais de uma década, e fiquei muito satisfeito em perceber que boa parte das previsões do texto estão se cumprindo. Arrisco dizer que os jogos independentes, feitos por pessoas e para pessoas, nunca foram tão populares.


Fase três: O que é scratchware?

O termo scratchware se refere a jogos de computador criados por grupos pequenos de pessoas, com qualidade profissional de arte, design, programação e som, para que sejam vendidos a preço de livros de bolso.

Um jogo scratchware pode ser jogado por virtualmente qualquer pessoa que puder alcançar um teclado de computador e souber ler. Jogos scratchware são de curta-duração (algo em torno de quinze minutos a uma hora), nos dão vontade de rejogá-los inúmeras vezes, e são satisfatórios como desafio e divertimento.

Por que o termo scratchware?

Scratch significa trocados, moedas. Ware vem de software, programa de computador.

Por que precisamos de scratchware?

Precisamos de scratchware porque os jogos eletrônicos produzidos pela indústria e vendidos no mercado tradicional estão custando muito caro para a maioria das pessoas. Temos jogos de cem a duzentos reais sendo vendidos para os grandes consoles. Quem pode pagar por isso?

Considere que os jogos que nos são oferecidos por esses preços são feitos em linhas de produção, não só quando se transformam em CDs numa fábrica, mas desde a sua concepção. Eles devem vender, e por isso vemos sequências e mais sequências das mesmas franquias, que ousam cada vez menos enquanto evitam desagradar os nerds babões que reclamarão eternamente caso haja um pingo de personalidade além da esterilidade criativa habitual.

Também precisamos de scratchware porque os times de desenvolvimento de jogos se tornaram grandes demais. Imagine escrever uma música ou poema com 10 outras pessoas. Imagine tecer uma tapeçaria ou pintar um quadro ou escrever um livro com 20 pessoas. Agora imagine fazer um jogo de alto orçamento. O time de desenvolvimento de um jogo de tiro em primeira pessoa, por exemplo, seria composto por cerca de 50 ou 100 pessoas.

Por outro lado, imagine fazer um jogo de computador com uma ou outras duas pessoas com diferentes habilidades. Podem ser seus amigos ou familiares. Imagine fazer isso sem a restrição de prazos de entrega ou a burocracia que atormenta as empresas. Imagine estar realmente no controle do conteúdo, da jogabilidade, da arte e da relação entre todas essas coisas, ao invés de subordinar isso a outra pessoa. Imagine um jogo que pode realmente ser feito e faça-o.

Imagine scratchware!

Precisamos de scratchware porque há mais de uma maneira de desenvolver bons jogos de computador. As corporações do videogame estão viciadas em seus próprios mecanismos e investir em idéias ousadas não é uma opção segura, pelo menos não quando falamos de jogos. Quando falamos de aparelhos eletrônicos absolutamente desnecessários para a fruição de um jogo, as corporações nos fazem engolir uma penca de promessas de inovação - bugigangas tecnológicas que não podem sustentar por si só a cultura do videogame.
Um criador de jogos scratchware, por sua honesta indiferença à indústria do videogame, pode simplesmente ignorar esses mecanismos sem sentido e construir grandes jogos.

O termo scratchware se refere a outras aplicações além de jogos?

Absolutamente, embora aplicativos e ferramentas scratchware provavelmente já existam.

Como jogos scratchware são feitos?

Uma a três pessoas projetam, criam, testam e distribuem os jogos. Eles são feitos usando software e hardware normais visando o computador comum, não exigindo que os jogadores invistam em novas placas de vídeo ou mesmo computadores novos inteiros para que os jogos funcionem corretamente. Jogos scratchware são feitos à noite, nos fins-de-semana, durante as férias, ou quando for possível.
Tarefas são delegadas ou divididas. Cada um dos envolvidos deve ter pelo menos duas das habilidades seguintes: programar, desenhar, projetar fases e mapas, roteirizar, compor músicas e efeitos sonoros.
Um jogo scratchware é, primariamente, 2D - o que define sua aparência, mecânica e personalidade. Jogos 3D são mais complexos e custosos, principalmente se estivermos trabalhando em equipes pequenas. Os jogos 2D podem ser desenvolvidos com maior rapidez e facilidade, dependendo do porte do jogo - e, no caso dos scratchware, estamos falando de jogos curtos.

Quem faz jogos scratchware?

Poucos fazem jogos scratchware intencionalmente, mas há uma porção de jogos que podem se enquadrar nesta categoria. Por exemplo: os jogos das Ludum Dare, assim como os títulos disponíveis na Kongregate e diversos outros jogos independentes espalhados por aí.

Se o jogo tem conteúdo original, oferece uma grande jogabilidade e rejogabilidade, tem aparência profissional, é livre de bugs, custa vinte e cinco dólares ou menos pelo jogo completo, e foi feito por 3 pessoas, é scratchware.

Quanto custa o desenvolvimento de um scratchware?

Cada pessoa envolvida num grupo de scratchware avalia seu talento e ferramentas. A pergunta então é feita: Qual das nossas idéias de jogos podemos implementar usando apenas as habilidades, possibilidades e ferramentas que já temos?

Fazer um jogo scratchware custa, essencialmente, o nosso trabalho. Em termos econômicos, custa o que provavelmente já temos: um computador, energia elétrica e acesso a programas freeware.

Se fazer um jogo scratchware custa algo a mais do que isso, ele provavelmente custa tanto quanto seu hobby normal, como ciclismo, fotografia ou peteca.

Que gêneros de jogos são apropriados para scratchware?

Qualquer gênero (nave, plataforma, estratégia, etc) ou temática (terror, ficção científica, fantasia, etc) pode ser abordado em um jogo scratchware.

Quanto custa um jogo scratchware?

$10 a $25. Baixável ou em CD-ROM.

O que eu terei pelo meu dinheiro?

Um bom jogo, com qualidade profissional de arte, programação, escrita, design, som e música, e a um preço razoável e que vale a pena.

Quem distribui scratchwares?

Ninguém. Correntemente não existem sistemas ou modelos de distribuição além do modelo shareware. Scratchware precisa de métodos de distribuição criativos. Soluções para esse problema vão variar mas inovações em como nos comunicamos e fazemos comércio na internet parecem oferecer as melhores possibilidades por enquanto.

Criar um sistema de distribuição para jogos independentes e scratchware pode ser muito atrativo para pessoas com mentes mais empreendedoras entre nós. Uma iniciativa do tipo pode se mostrar muito lucrativa. Escrever resenhas sobre jogos scratchware e garimpar bons títulos independentes por aí, divulgando-os, já é um excelente começo para popularizar a cultura do videogame como uma cultura de criadores, e não apenas de consumidores à mercê dos caprichos de uma indústria, como é atualmente.

O Manifesto Scratchware

O manifesto scratchware teve início no verão de 2000. Escrito em colaboração e inspirado pelo Cyberpunk Manifesto, está aí para ser um órgão vivo, uma mensagem na garrafa, um grito de guerra. Se depois de ler esta versão você for movido para a ação, encorajamos a discutir seus pensamentos, revelações, experiências e idéias abertamente. Deixe as coisas rolarem.

Também encorajamos você a fazer sua própria versão do manifesto, de acordo com a sua situação particular, visão ou necessidade. Esta é a proposta primária do documento.

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