Traduzido do original. Os comentários entre colchetes são do tradutor.
COMO UM GRUPO CRESCENTE DE DESENVOLVEDORES INDEPENDENTES VEM USANDO OS VIDEOGAMES PARA COMPARTILHAR SUAS EXPERIÊNCIAS DE VIDA
Lim é um jogo simples. Só leva alguns minutos para jogar. Você percorre um mundo minimalista na pele de um quadrado. Não há nada dizendo o que você deve fazer, então você simplesmente vai andando pelo labirinto. Quando você está sozinho em algum corredor, seu quadrado pisca em todas as cores do arco-íris. Mas não demora muito e você encontra quadrados de cores diferentes. Eles não gostam de você. Eles batem em você. Eles fazem com que o seu progresso se torne quase impossível. A tela treme; o chiado é violentamente nauseante. Sua única esperança é segurar o Z para "se adequar" [blend in, no original]. Você fica marrom perto dos quadrados marrons; você fica azul perto dos quadrados azuis.
Merritt Kopas, criadora de Lim. |
Mas essa é uma solução imperfeita. Conforme você tenta se adequar, seus movimentos vão ficando mais lentos, e a câmera se fecha num zoom sobre o seu personagem. Continue "se adequando" e todo o jogo começa a sacudir e estourar. O efeito é o mesmo de quando você está sendo atacado pelos outros quadrados, com a diferença de que agora a violência está surgindo de dentro de você. Tentar se adequar é tão exaustivo, tão desgastante, quanto ser excluído. Algumas vezes há quadrados marrons e azuis na mesma sala, então não importa o que você faça, alguém vai te atacar. Mas você tenta se adequar mesmo assim. Você continua atacando a si mesmo enquanto é atacado pelos outros.
Você deveria ser capaz de chegar ao final do labirinto. Mas a vida nem sempre é como o planejado. Algumas vezes os outros quadrados bloqueiam você em um corredor estreito, impossibilitando o progresso. Algumas vezes as agressões são tão violentas que você é empurrado para fora do labirinto através da parede, ficando preso do lado de fora. A ironia é que aqui, do lado de fora, você é livre para ser você mesmo. Não mais um quadrado marrom ou azul, você pisca em todas as cores do arco-íris. Excluído, você pode ser você mesmo.
Lim é um jogo de Merritt Kopas, uma mulher queer que, entre outros talentos, é uma designer de jogos, escritora e fotógrafa. Kopas dedicou dois meses na criação de Lim, utilizando o programa Construct 2. "Foi meu segundo jogo", ela explica. "Mas meu primeiro jogo foi muito menor. Lim foi o primeiro grande projeto para o qual eu me dediquei de verdade."
Kopas não tem um background profissional em game design. Graduada em sociologia na Universidade de Washington, ela já vinha se envolvendo há algum tempo com algumas ferramentas de desenvolvimento de jogos, mas só começou a fazê-los a sério no último verão. A despeito da pouca experiência e conhecimento em programação, Kopas foi capaz de criar um videogame profundamente poderoso e evocativo, Lim, que chegou a ser reconhecido pela crítica em portais como Rock Paper Shotgun, 1UP e até mesmo The Guardian.
"Eu esperava que algumas pessoas vissem o jogo e que ele dialogasse com elas de alguma maneira", ela explica. "Mas eu não esperava toda a repercussão que o jogo conquistou. Isso me tocou."
Enquanto Lim não apresenta gráficos avançados nem uma programação perfeita, está cheio da vontade de Kopas em transmitir algo que é pessoal e significativo para ela [eu acrescentaria que a economia audiovisual do jogo é coerente com a proposta, resultado de escolhas estéticas bem acertadas, e não constitui uma "falta" na qualidade geral do jogo que deva ser compensada por outros aspectos - mas intensificada por eles]. "O verão em que eu fiz Lim foi também o primeiro verão em que eu comecei a me apresentar para o mundo como mulher", ela explica. "Eu penso muito sobre como o espaço público é experienciado, e eu busquei traduzir essa preocupação numa experiência que pudesse ser apropriada por outras pessoas."
Lim e Kopas são um bom exemplo de uma cena queer que está emergindo no videogame independente - uma comunidade diversa de criadores DIY que estão estabelecendo seu próprio espaço, produzindo jogos únicos e inovadores, na periferia das comunidades indies e da indústria mainstream. É um movimento de criadores que estão priorizando o pessoal sobre o perfeito. É um movimento que está começando a virar cabeças e desafiar a indústria mainstream a reconsiderar o que um videogame pode ser.
Sim, como o quadrado nas cores do arco-íris empurrados para fora das paredes do labirinto, esses criadores e seus jogos ainda estão presos do lado de fora. A despeito de serem belos trabalhos, seus jogos são normalmente subestimados por serem curtos demais, simples demais, diretos demais ou simplesmente não são considerados videogame. Mas algo está começando a mudar. Embora eles careçam de acesso à tecnologia e o conhecimento que até então tem sido considerados pré-requisitos para a criação de jogos, esses desenvolvedores queer - tão diferentes entre si quanto são semelhantes - estão se tornando impossíveis de ignorar ao criarem videogames que são diferentes de qualquer coisa que os jogadores já tenham visto, videogames que estão capturando a atenção de uma audiência crescente.
A ASCENÇÃO DE UMA CENA QUEER NO VIDEOGAME
"Pessoas queer sempre criaram cultura a partir das margens", insiste Anna Anthropy, desenvolvedora de jogos e escritora. "Por exemplo: pessoas queer popularizaram o jeans. Havia soldados queer que vestiam calças jeans fora dos quartéis, então isso foi se tornando popular. Você precisa de uma perspectiva de fora para criar algo que é significativo, moderno, inteligente. Então isso é gradativamente adotado pelo mainstream."
De fato, mesmo os videogames emergiram de uma perspectiva "de fora". Quando os estudantes do MIT no começo dos anos 60 usaram um supercomputador PDP-1 para rodar o jogo Spacewar!, eles estavam explorando o potencial dos computadores para usos que os seus professores nunca haviam considerado. Entretanto, nas décadas que se seguiram desde o seu nascimento, os videogames tem lutado para representar experiências e identidades além do núcleo histórico da cultura do computador: homens jovens estudantes. Como Anthropy escreve de forma sucinta no seu livro Rise of the Videogame Zinesters: "Jogos são produzidos para uma limitada cultura dominada por homens e sua propaganda é voltada para uma limitada cultura dominada por homens que, por sua vez, produz a próxima pequena geração de desenvolvedores de jogos que trabalharão pela manutenção dessa mesma cultura."
Mas mesmo que a indústria mainstream se mantenha dominada por uma única demografia, há uma grande diversidade de pessoas do lado de fora, nas margens, que estão criando seus próprios videogames há anos, superando o foco da cultura "gamer" mainstream.
Anthropy é uma das mais conhecidas entre essas vozes alternativas. Seus vários jogos aclamados pela crítica - como Mighty Jill Off, Calamity Annie, Lesbian Spider Queens of Mars e, mais recentemente, o autobiográfico Dys4ia - frequentemente desconstroem o repertório tradicional dos videogames, reapresentando-os de maneira provocativa. "Eu sou muito boa em atrair nerds gamers e então surpreendê-los com uma discussão sobre gênero", diz ela com um sorriso malicioso. "Eu acho que fazer coisas que parecem videogames, funcionam como videogames e são videogames muito "videogamísticos" é uma ótima maneira de enganar as pessoas para que elas se tornem seres humanos mais esclarecidos e educados."
Anna Anthropy criou Mighty Jill Off, Dys4ia, entre outros. |
Mas para Anthropy, um espectro de temas mais amplo sendo abordado nos jogos seria uma consequência inevitável de uma comunidade mais diversa de criadores de jogos: "Eu não estou certa se todos os meus jogos são sobre ser queer, mas minha identidade queer está sempre visível neles. Eu acho que representação é importante... fazendo as pessoas conscientes de que o queer existe e representando o queer nos jogos. E também atingindo outras pessoas queer que, de outra forma, se sentiriam bem alienadas em relação aos jogos."
A exceção à regra, Anthropy tem recebido atenção regular da mídia desde 2008, quando ela lançou Mighty Jill Off. Mas essa atenção frequentemente consiste em "tokenismo", como se as pessoas estivessem interessadas nela mais como uma curiosidade do que como uma pessoa. "Sempre houve desenvolvedores queer", salienta. "Mas, sei lá, eu me senti durante muito tempo como uma voz gritando no deserto. Em grande medida, nenhuma das outras pessoas nas margens que estão fazendo jogos tem obtido o nível de cobertura da imprensa, de saturação midiática, que eu."
Nos últimos 18 meses, algo começou a mudar. Um grande número de desenvolvedores queer começou a aderir ao que as pessoas - tanto dentro quanto fora da comunidade - tem reconhecido como uma cena ou movimento. Mesmo que o trabalho de cada autor permaneça enfaticamente individualista, uma rede ainda em formação de suporte e solidariedade pode ser traçada, amplificando o alcance da voz de cada um desses autores. Vozes conhecidas como a de Anthropy estão sendo vistas sob uma nova luz, enquanto muitas outras estão sendo ouvidas pela primeira vez.
UM CORO CRESCENTE DE VOZES
"Videogames estão diferentes do que eram um ano atrás", diz Anthropy. "Parece que agora o foco deixou de estar exclusivamente sobre mim. Parece que as coisas incríveis que os meus amigos fazem estão começando a ser reconhecidas pelas pessoas. Há essa discussão que está acontecendo sobre os jogos queer, sobre esse tipo de jogo pessoal. Há uma discussão agora, enquanto antes era só eu sendo uma curiosidade."
A crítica de jogos, acadêmica e desenvolvedora Mattie Brice concorda: "Eu poderia dizer que os jogos queer sempre estiveram acontecendo, mas não em uma comunidade, necessariamente. Aconteceu uma união. As coisas estão se dirigindo para algum lugar. Enquanto essas pessoas sempre estiveram fazendo coisas à sua maneira, agora há uma boa intersecção de pessoas pegando juntas e realmente construindo algo como um caminho. ... Como uma identidade, como um movimento, isso é definitivamente algo recente, de um ano pra cá."
Liz Ryerson é música, desenvolvedora de jogos e escritora que compôs a música de Dys4ia e, mais recentemente, Triad. Ela pontua a urgência que há nas pessoas queer - e, em particular, as pessoas trans* - criarem seus próprios espaços no videogame: "Muitas mulheres trans* cresceram com videogames sendo socialmente aceitáveis, pois foram criadas como homens. Então quando elas transicionam, precisam confrontar o fato de que não são mais parte dessa 'cultura gamer'. Não há espaço para elas lá, então esse espaço precisa ser criado."
Mas por que agora? A despeito da relutância de Anna em ser vista como algum tipo de líder da cena queer, é difícil superar sua significância como uma referência com a qual se relacionam os novos criadores, tanto como uma figura pública na imprensa especializada quanto como autora de seu livro. Publicado em 2012, Rise of the Videogame Zinesters é um manifesto, uma chamada às armas para as pessoas (não apenas as pessoas queer) para criar jogos pequenos, imperfeitos e que sejam um meio de expressão. Isso vai de encontro à idéia normativa de que você precisa aprender a programar em código antes de fazer jogos, de que você precissa ter acesso a ferramentas caras, que um bom jogo deve ser tecnologicamente avançado. É feito um apelo para que as pessoas tirem vantagem de ferramentas baratas e acessíveis como GameMaker e RPG Maker, ou editores de ficção interativa como o Twine, para "rabiscar" videogames, para criar e distribuir videogames assim como alguém poderia escrever e distribuir um fanzine.
Ao fazê-lo, isso encoraja um grupo bem mais diverso de pessoas a criar jogos como nunca, e isso prepara uma audiência que passa a levar esses jogos a sério. Pessoas que são excluídas do game design tradicional, pessoas que não podem adquirir softwares ou realizar cursos caros e/ou restritivos, ainda podem fazer algo. Isso cria um novo campo de atuação com a repercussão inevitável que se inicia quando vemos jogos feitos por pessoas que nunca tinham feito jogos - e os jogos que elas fazem serão diferentes de qualquer jogo que já tenhamos visto.
Esse é um passo importante para que o videogame, como mídia, conquiste a sua maturidade. Um passo que há precedentes históricos em outras mídias. "Assim como a fotografia se tornou mais acessível e passou a ser usada para um leque maior de propósitos, eu penso que o mesmo está começando a acontecer com os jogos" diz Kopas. "Minha esperança é que o legado duradouro da cena queer no videogame seja quebrar essa barreira do 'isso precisa ser uma parte crucial da sua identidade. Você precisa ser um desenvolvedor de jogos para fazer jogos.' Quer dizer, pessoas não precisam ser fotógrafas para tirar fotos."
Kopas observa, porém, que o catalisador não foi o livro de Anthropy sozinho, mas também a crescente onipresença das redes sociais - especialmente o Twitter. Mais pessoas estão ganhando a confiança para fazer algo, e elas podem se conectar mais facilmente a outras para compartilhar seus jogos como antes não era possível. "Esse processo é como uma bola de neve," diz Kopas. "Quando alguém está na dúvida, inseguro, 'Será que eu posso fazer um jogo?', e vê algo assim, isso constrói uma confiança que transforma a pergunta numa afirmação "Sim, isso é algo que eu posso fazer!"
Mattie Brice fez o jogo Mainichi, sobre o seu cotidiano sendo queer. |
Para Brice, Videogame Zinesters não foi um aspecto tão formativo para a comunidade queer no videogame tanto quanto foi informativo para aqueles fora da comunidade - o livro ajudou a expor o trabalho dessa comunidade para os outros. "Eu diria que o livro de Anna mostra o que está sendo feito. Você também pode fazer jogos. Isso abre as portas para uma audiência maior, para pessoas que não sabiam que poderiam fazer jogos. ... Isso definitivamente ajudou o videogame queer a sair de uma cena insular para algo que pode se proliferar, para fora dessa pequena ilha."
Outra desenvolvedora queer que está traçando sua trajetória desde o ano passado é Porpentine, que emergiu como uma voz de liderança na cena dos jogos feitos em Twine. Da obscuridade geral na cena de ficção interativa, Porpentine agora ocupa o palco da Game Developer's Conference, e é uma das curadoras da página Free Indie Games junto ao desenvolvedor independente Terry Cavanagh. Porpentine, também, aponta Anthropy como grande responsável por seu interesse em usar os jogos para se expressar: "Eu sempre fui interessada em jogos, mas eu acho que encontrar a Anna realmente me ajudou a definir melhor. Ela me ajudou a perceber que jogos podem ser sexy, e jogos podem ser feitos por mulheres, e mulheres queer especialmente. Algumas vezes tudo o que você precisa é ver que alguém está fazendo para fazer também."
Como esperado, Anthropy é modesta sobre a significância de seu papel na emergência da cena e no recente momento. "Eu prefiro apenas pensar em mim como uma outra voz. Então o que realmente tem sido gratificante pra mim é sentir que estou conquistando algum tipo de irrelevância!" ela diz com uma risada. "Quero dizer, eu não sou mais tão especial. Eu gosto muito disso. Eu comparo isso a acordar um dia de manhã e perceber que a sua criança ficou mais esperta do que você. É um sentimento maravilhoso, não ter mais esse fardo para carregar sozinha."
CONTINUA NA PARTE 2
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