Precisamos falar sobre a Mônica. Ok, não só sobre a Mônica, mas achei que seria um jeito divertido de começar o texto. Muitos já devem ter lido ou ouvido algo sobre a tal "lei da publicidade infantil", que provocou uma onda de comentários alarmistas a seu respeito. Pra quem ainda não teve acesso à resolução e está acompanhando o debate pelas beiradas, vale uma lida. Resumidamente, a resolução proíbe qualquer peça de publicidade ou comunicação mercadológica (embalagens, concursos, merchandising etc.) que seja apelativa para a criança. Ou seja: o público-alvo da publicidade não pode mais ser a criança. Da publicidade, não do produto - os produtos específicos para crianças podem continuar disponíveis no mercado, mas sua propaganda deve se dirigir aos pais ou responsáveis. O objetivo alegado é proteger a criança dos efeitos nocivos do desenvolvimento das "tecnologias de informação e comunicação" - tipo proteger das propagandas, mesmo. Algo como jogar uma bóia pra criança no mar infestado de tubarões. Se eu concordo com a resolução? Na boa: sei lá. Acho que a lei nem é grande coisa, embora tenha aspectos positivos e uma motivação legítima. O que me motivou a escrever isto aqui, na verdade, foram os debates posteriores à resolução, e eu queria pontuar algumas coisas.
VÃO ACABAR COM OS DESENHOS ANIMADOS NA TV ABERTA
Uma das teorias mais levantadas é a do apocalipse da TV Globinho. A lógica é a seguinte: é a publicidade que paga a exibição dos programas; quem assiste desenho animado e aqueles sorteios de Playstation no Bom Dia & Cia são as crianças; não por acaso, os anunciantes de produtos infantis preferem ocupar esses horários, pois o público majoritário é infantil. O horário nobre não é nobre porque passa novela, mas porque é mais lucrativo, tem mais gente em casa assistindo, o papai e a mamãe já voltaram do trabalho pra ver bastante propaganda de Skol e Honda Civic. Sem poder dirigir publicidade às crianças, o horário infantil (tradicionalmente as manhãs de segunda a sábado) perderia anunciantes, se tornaria menos lucrativo e a emissora poderia suprimir esse tipo de programa em função disso - essa é a teoria. Vale lembrar que algumas emissoras, como por exemplo a TV Cultura, recebem seus recursos do governo e de outros modelos de patrocínio menos ostensivos, além da publicidade. Voltaremos a isso daqui a pouco.
PUBLICIDADE COMO ENTRETENIMENTO
Falávamos de Skol e Honda Civic. Já perceberam como as propagandas de cerveja e de carro são como delírios masculinos (heterossexuais, brancos, de classe média e tudo o mais)? As mulheres inertes, risonhas e engarrafadas aos seus pés, o carro novo à toda velocidade em paisagens pitorescas onde engarrafamentos não existem, e um locutor fazendo comentários encorajadores e pouco relacionados às qualidades concretas dos produtos anunciados. Isso porque a publicidade não é simplesmente um meio de informar aos prováveis consumidores que um produto existe e convencê-los de que tem boa qualidade - publicidade tornou-se entretenimento. Não é informação, é entretenimento puro e simples, sem qualquer motivação além da necessidade de provocar uma imediata reação positiva no espectador, oferecendo gatilhos à expectativa hegemônica do público-alvo da campanha. A publicidade é uma fábrica de estampar sorrisos bobos. Assistimos mais à publicidade na televisão do que aos programas patrocinados por ela, por isso ela se tornou entretenimento - é uma maneira sutil de interromper a fruição do programa. Quando a propaganda está sendo veiculada no horário do programa infantil, ela se torna um programa infantil, um mini-delírio masculino ou feminino, heterossexual, branco, classe média e tal. A criança é submetida, então, às mesmas estratégias de gatilho: a publicidade do produto infantil constrói um repertório de expectativas, uma série de critérios sobre o que é desejável, o que é "de menino", "de menina", bonito, novo, na moda etc. Transforma a fruição num jogo de "quero/não quero". E o adulto compartilha desse repertório, não se enganem! Não é voltando o canhão pros pais que o tiro vai deixar de ser devastador. E quando digo que a publicidade constrói essas visões de mundo, é claro que não estou ignorando os mil outros fatores que entram na dança. Quando falamos de formação cultural, não há nenhum agente isolado. Não se trata de demonizar a publicidade infantil - não precisamos, ela é mesmo uma merda, assim como toda a publicidade, assim como a televisão e a maneira como ela é paga. A porra toda se demoniza sozinha, mesmo sem lei nenhuma. Precisamos ter um entendimento mais sistêmico da questão.
VIDEOGAME, INDÚSTRIA CULTURAL E MÍDIA
Vamos falar um pouco sobre videogame, já que é esse o interesse central deste blog. Por que é tão importante pautarmos o videogame independente e combativo - ou seja, que se oponha ao modelo de produção industrial? Ou, pelo menos, por que eu acho isso tão importante? Primeiro: como funciona a indústria cultural? Podemos imaginar ela como uma estrutura linear, progressiva, em permanente processo de intensificação e especialização (podemos falar tanto de conteúdo quanto de tecnologia - obsolescência programada, tecnologia de ponta... esse tipo de coisa também aparece aí). Da indústria, esse produto vai pro mercado, do mercado ele vai pro consumidor, e então voltamos à indústria. Parece um ciclo, mas é uma linha. Mesmo que um produto venda bastante, ele pode ser considerado um fracasso em relação a outros produtos que venderam mais, e sua produção pode ser abandonada. A cada geração de produtos é feita essa seleção, separando o que foi absorvido pelo mercado do que não foi. A cada geração, o produto se torna mais específico, voltado a um grupo de consumidores cada vez menos diverso e ao mesmo tempo mais numeroso.
O levante queer no videogame independente é um ótimo exemplo dos efeitos da indústria cultural: um público que se identificava até certo momento de sua vida com o videogame enquanto cultura de massa passa a não se sentir mais contemplado por ele, pois suas expectativas deixaram de ser englobadas num determinado estágio dessa progressão linear. A marginalização desse grupo diverso de pessoas, que deixa de consumir a produção industrial, provoca a sua necessidade de deslocamento do lugar de consumidores para produtores de conteúdo. Se o videogame não é para nós, então nós seremos o videogame! O videogame independente é combativo quando não quer ser assimilado pela indústria, quando a considera um aparato nocivo ao desenvolvimento de uma cultura livre, que não esteja submetida ao capital, que não possa ser cortada, cancelada ou substituída por algo mais rarefeito e mais lucrativo.
Se a publicidade é entretenimento, e se compreendermos o entretenimento como sinônimo de "produto da indústria cultural", podemos vislumbrar o horror da propaganda submetida a essa lógica de intensificação linear. Uma fábrica de sorrisos bobos que a cada geração produz sorrisos mais bobos para cada vez mais gente menos diversa. E agora voltamos ao absurdo que é submeter os meios de comunicação, em especial a televisão, a essa ordem de coisas. Se for suprimida a programação infantil (acreditem, não vou ficar com nem um pouco de saudade da Maísa) em razão de uma queda significativa no número de anunciantes, o problema não está na lei que proíbe a publicidade infantil, o problema está na maldita publicidade infantil! O problema está na publicidade, na publicidade como entretenimento, nos modelos de financiamento adotados pela maior parte das emissoras, e no oligopólio a que estão submetidos os meios de comunicação de massa! Parem de chorar pela Maurício de Sousa Produções que não vai mais poder vender maçã da Mônica pra classe média e comecem a pautar uma democratização radical da mídia, de forma que o conteúdo de qualidade (infantil ou não) jamais será ameaçado por questões mesquinhas como uma ínfima fatia do lucro anual da Nestlé, esse é o conselho que deixo pra vocês.
ARTICULAR CULTURAS POPULARES DE PRODUÇÃO DE BRINQUEDOS
Outra coisa que também ouvi: a indústria dos brinquedos será arruinada, os pais não saberão encontrar os brinquedos que os filhos querem, os brinquedos não saberão encontrar seu público... enfim, coisas do tipo. É claro que eu ficaria muito satisfeito se a indústria de brinquedos fosse arruinada - embora, acreditem: ela não vai ser arruinada por essa resolução, podem dormir tranquilos. Não é só porque eu gosto de ver o circo pegar fogo, não. Ok, vivemos no capitalismo, mas não precisamos nos adaptar completamente, podemos articular algum tipo de resistência na medida das nossas forças. É o que eu tento fazer com videogames (de maneira ainda incipiente, diga-se de passagem). Eu prefiro imaginar outras maneiras de produzir e fruir brinquedos, maneiras que não dependam do aparato publicitário, da cultura de massa, da fabricação em série e distribuição globalizada. Prefiro imaginar não um mundo em que todas as crianças tenham uma Barbie loira e magra, mas um mundo em que todos os brinquedos sejam possíveis, e todos possam ser seus produtores, inclusive as crianças. Se é urgente o videogame independente e combativo, é também urgente o brinquedo independente e combativo, e também o desenho animado, e as histórias em quadrinhos, e podemos passar a noite fazendo uma lista. Precisamos de culturas locais de produção de brinquedos que possam se opôr ao gosto hegemônico, que funcionem como agentes culturais capazes de instrumentalizar as crianças para a tarefa de construir um mundo mais diverso, provocar nelas uma sensibilidade mais ampla, mais atenta. Brinquedos potentes! E não estou falando de pandorgas e piões de madeira: é possível nos alimentarmos da cultura de massa de forma corrosiva e transformadora, aplicando estratégias de copyleft, pirataria e détournement, e o que mais pudermos pensar. Não se trata de ignorar, fingir que não existe, mas de travar diálogos conflituosos. Não precisamos nos contentar com o mundo que nos dão, com o mundo que nos mostram nas vitrines e comerciais, com o mundo que querem que compremos - para nós ou para nossas crianças.
Outros links relevantes:
Se você é contra o capitalismo eu tenho uma solução muito simples, se mude para a Coréia do Norte!!!
ResponderExcluirSaudades da época que o PfP era mais preocupado em fazer retro games inteligentes do que bancar o pseudo-ativista-de-redes-sociais.
ResponderExcluirTão achando que aqui é a casa da mãe joana?
ResponderExcluirVai censurar comentários que não estão alinhados com sua doutrina? Ué, achei que era um defensor da liberdade de expressão.
ExcluirSim, eu sou o ditador das redes sociais. Gosto de censurar os coitadinhos que aparecem aqui pra pessoalizar o debate.
ExcluirA.K.A. você não aceita críticas e rebate com essas suas respostas típicas de quem se sente culto demais pra se misturar com a gentalha.
ExcluirBom texto e ótimas reflexões. Você têm uma boa visão do mercado e da sociedade.
ResponderExcluirSempre que vejo essas pessoas defendendo o capitalismo ou falando mal da dilma imagino que são uns ricaços, latifundiários ou empresários. Não sei o que as pessoas vêem de tão legal em ter o coro arrancado pra dar lucro pros outros. vai entender...
Obrigado.
ExcluirAcho que nem se trata de defender o capitalismo por identificação, mas estamos tão acostumados a competir uns com os outros (um hábito que adquirimos na escola e que se estende até o mercado de trabalho) que é mais fácil e mais prazeroso transformar qualquer princípio de debate num jogo de fragilizar o outro. Então o outro vira esquerdopata, petralha, pseudo-qualquer coisa e mil outras expressões que esvaziam o conflito de idéias em benefício da competição pura.