sexta-feira, 1 de agosto de 2014

VIDEOGAMES PARA HUMANOS (Merritt Kopas)

LIÇÕES DE FOREST AMBASSADOR


Traduzido do original. Os comentários entre colchetes são do tradutor.


Numa palestra recente na Universidade de Victoria, eu disse que a decisão de um criador em produzir um jogo - em vez de trabalhar com uma mídia mais convencional [literatura, por exemplo] - imediatamente reduz o público de seu trabalho.

Essa pode ser uma declaração controversa, mas a minha breve experiência fazendo jogos digitais me leva a acreditar que o videogame como mídia apresenta uma série de obstáculos para o seu acesso. E o que é pior: esses obstáculos são experienciados de formas diferentes entre categorias sociais no que concerne a raça, classe, habilidade e gênero. Na medida em que os jogos digitais continuam sendo um espaço codificado prioritariamente para homens brancos, heterossexuais e cisgênero, criar um videogame em vez de produzir algo sob os limites de outra mídia reduz desproporcionalmente a diversidade do público, que exclui pessoas de cor, mulheres, pessoas queer, pessoas com deficiência, e pessoas de baixa renda.

Ao mesmo tempo em que eu reconheço os profundos mecanismos de exclusão construídos sobre a cultura dos jogos digitais, eu vejo a importância de afirmar o trabalho que está sendo feito por uma grande variedade de pessoas, inclusive muitos dos que não se encaixam no perfil histórico do game designer. Meu projeto Forest Ambassador é uma tentativa de reconciliar esses dois padrões através da curadoria deliberada de jogos que obedeçam aos critérios de gratuidade, curta duração, pouca exigência de um repertório prévio de videogame e nenhum equipamento especial. Aqui eu gostaria de falar um pouco sobre as razões por trás do site e como eu vejo ele como parte de um projeto mais amplo de mudança na cultura dos jogos digitais.

GRÁTIS E RÁPIDO

O primeiro critério que eu defini para o site foi que todos os jogos ali deveriam ser gratuitos. Os dois modelos dominantes no videogame mainstream são as lojas ou vendas online na faixa dos $20-60 [dólares] e os downloads de aplicativos mobile, que costumam ser relativamente baratos mas requerem smarthpones caros, ou então dependem de contínuas microtransações. Classe é uma barreira para a cultura dos jogos digitais, a uma que só recentemente começou a ser discutida pelo público mainstream.

O segundo critério - de que os jogos devem ser relativamente breves - representa uma tentativa deliberada de exibir experiências bem compostas que respeitem o tempo do jogador. Assim como o dinheiro, o tempo é um recurso distribuído de maneira desigual, e escolher jogos que, em sua maioria, duram menos de cinco minutos significa que um número maior de pessoas poderá jogá-los. Os critérios "grátis e rápido" também funcionam juntos oferecendo um contraponto à idéia de que os jogos devem ser lentos ou ter longa duração ou mesmo não devem ter fim (o modelo de celular, por exemplo), ou então devem oferecer mundos massivos, "imersivos", que demandam um investimento extremo de tempo para que seja possível fruir uma experiência realmente satisfatória (o modelo dos blockbuster AAA).

Em última análise, videogames como o público mainstream os conhece são distrações caras, seja para partidas rápidas ou longas sessões de jogo que duram o dia inteiro. Se jogos segundo esse entendimento são o equivalente a revistinhas de palavras cruzadas ou filmes de ação hollywoodianos, então os jogos que eu posto no Forest Ambassador poderiam ser comparados a poemas, contos, canções ou tiras em quadrinhos.

Muitos de nós que trabalham com jogos algumas vezes tendem a esquecer o poder que as experiências mais breves podem carregar, ou a diluição que pode resultar do prolongamento demasiado de uma idéia que se estende além de 20 horas de jogo. Um jogo pode fazer muito em cinco minutos. Algo como 10 Seconds in Hell ou Ladylike é uma experiência intensa, emocional, uma peça como Asphyx ou Player 2 pode fazer você considerar a sua relação com o seu corpo ou com outras pessoas, e um jogo como Ultimate Flirt-Off or Tiny Sorceress pode fazer você rir de verdade - sim, videogames são capazes de fazer humor de verdade.

Screenshot de 10 Seconds in Hell, de Amy Dentata
Com o site ganhando popularidade, eu pensei em como eu poderia usar isso para apoiar criadores que estejam oferecendo seus jogos sob o modelo "pay-what-you-want" (pague o quanto quiser). Por enquanto, eu não tenho postado esse tipo de jogo porque estou hesitante em incentivar implicitamente que não paguem nada por eles, mesmo que seus criadores permitam. Uma das melhores partes da cultura de criação de jogos, para mim, inclui incentivar pequenos criadores a pensarem em seu trabalho como merecedor de alguma compensação e então compensá-los, por isso eu tenho pensado mais em como seria possível usar o Forest Ambassador para beneficiar pessoas que estão disponibilizando seus jogos sob esse modelo.

SEM DESTREZA NEM CONTROLE

Tempo e dinheiro representam barreiras relativamente óbvias para a inclusão nos videogames. Mas existem forças mais sutis que mantém as pessoas jogando videogames ou mesmo capazes de conceber os jogos como algo "para elas". Mais óbvio ainda, os tipos de instrução e conhecimentos necessários para jogar muitos jogos contemporâneos são muito mais exigentes do que eram em gerações anteriores.

Jesper Juul discute as convenções construídas historicamente na cultura do videogame em seu livro A Casual Revolution [Uma Revolução Casual], onde ele comenta que os jogos mainstream tem intensificado sua complexidade desde as primeiras máquinas de fliperama a tal ponto que até mesmo seus elementos mais básicos apresentam barreiras quase instransponíveis para sua fruição por qualquer um que não tenha crescido jogando-os [ou acompanhado seu desenvolvimento vertiginoso]. Dois exemplos aqui incluem a onipresença das interfaces de controle alienantes, com botões múltiplos, gatilhos, manches e assim por diante; e uma das mais básicas habilidades em muitos jogos contemporâneos: a de navegar por um ambiente fictício tridimensional acessando-o pela sua representação bidimensional na tela plana da televisão.

Para jogadores que cresceram com controles na mão e experenciaram a mudança dos jogos de plataforma bidimensionais (que já apresentavam desafios à destreza do jogador que não devem ser subestimados) para mundos tridimensionais, tais aspectos dos jogos são um estado de coisas já aceito e naturalizado. Para aqueles que não tiveram a mesma oportunidade, costumam aceitar sua falta de familiaridade como uma evidência de que não são "bons em jogos" ou mesmo como lembretes hostis de que o videogame não é um espaço que os acolhe.

Isso é um problema porque significa que a população de jogadores muda devagar em relação às expectativas produzidas sobre essa mesma população. Essa dinâmica cria um pingue-pongue desproporcional em que os tipos de jogos que são produzidos e as expectativas sobre quem irá jogá-los acabam criando uma cultura violentamente excludente.

Screenshot de Player 2, de Lydia Neon
Por essa razão é importante para mim destacar jogos que não supõem que o jogador esteja familiarizado com vinte e tantos anos de normas acumuladas. Muitos jogos criados no Twine cumprem esse requisito extremamente bem, porque sua interface é muito similar a uma página de internet - trabalhos como Player 2 e SABBAT não poderiam ser mais diferentes, mas ambos são muito fáceis de compreender e experenciar. Mas eu vejo uma porção de trabalhos interessantes sendo feitos fora desse formato, também. Só porque gêneros como first person shooters [atiradores em primeira pessoa, como Doom] são tradicionalmente muito difíceis de se "pegar o jeito" não quer dizer que eu deva evitá-los completamente. Jogos como Room ou 1000 Snakes e Reveal são jogos em primeira pessoa que eliminam a jogabilidade intrincada normalmente associada com o gênero, levando o jogador a experiências que podem apresentar uma ligeira curva de aprendizarem mas que, mesmo assim, podem ser interessantes convites ao engajamento mesmo para aqueles jogadores que não tem um repertório de jogos em primeira pessoa.

O EMBAIXADOR DESLEAL

Essas são as coisas que eu procurei considerar criando e mantendo o Forest Ambassador. Mas, por trás dele, há uma idéia maior, que não é explicitada no site, mas que tendo manter em mente o tempo todo. É mais ou menos assim: mesmo que o Forest Ambassador seja sobre levar os jogos para as pessoasl que, de outra forma, não os jogaria (o slogan atual do site é "introduzindo videogames"), e mesmo que eu tenha uma história de engagamento com os jogos digitais, eu tento evitar me posicionar como a imagem pública da "reabilitação dos jogos". A diferença pode não parecer óbvia, então eu vou tentar explicar.

Eu vejo um trabalho valioso e excitante sendo feito com os videogames. Com isso eu quero dizer que há um trabalho que pode interessar as pessoas fora da cultura mainstream do videogame, algo que seja digno de fruição por razões próprias e não por cumprir com as normas correntes sobre o que deve ser um videogame. Com o Forest Ambassador, meu objetivo é procurar este trabalho onde quer que eu possa encontrá-lo e recolhê-lo em minhas mãos para oferecer às pessoas que jamais viriam a conhecê-lo. Isso às vezes significa oferecer algum contexto no gênero em que o jogo se insere, trabalhos similares, uma apresentação do autor, e assim por diante. Mas isso não quer dizer que meu objetivo seja usar esses jogos para pôr uma nova cara na cultura do videogame, ou colocar os "de fora" por dentro da coisa.

Se queremos fazer da cultura do videogame algo melhor, deveríamos reconhecer que há razões muito boas para que tantas pessoas não estejam dentro da coisa: há razões monetárias, de tempo, e barreiras relacionadas às habilidades necessárias para jogar - tais condições operam para manter tudo como está. Nós precisamos nos lembrar de que as pessoas não devem nada à história dos jogos digitais, nem às convenções construídas em torno deles, ou às pessoas que estão mais familiarizadas ou experenciam os videogames há mais tempo. Nós precisamos estar dispostos a examinar as coisas que para nós são naturais a respeito dos videogames e, se necessário, abandoná-las ou alterá-las radicalmente.

Pensando assim, o Forest Ambassador não é sobre a criação de uma cultura do videogame melhor de um todo. De uma forma muito sua, ele é sobre encontrar as mais interessantes, valiosas e belas sementes num ambiente turbulento e às vezes ameaçador, espalhando-as generosamente na esperança de que as fronteiras entre o que é floresta e o que não é fiquem um pouco mais difíceis de desenhar.

SELEÇÃO DE JOGOS ADICIONAL

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