Acompanhando o último fiasco do Movimento Brasil Livre sobre a exposição Queermuseu, não posso deixar de me lembrar do outro fiasco que interrompeu o que prometia ser um projeto muito promissor. Infelizmente, nenhuma Lygia Clark ou Volpi estava presente pra assinar as obras. O MBL e seu fã-clube me lembram alguns inimigos que já chamei de colegas de trabalho, por isso decidi publicar um texto que, sei lá, não me dá muito orgulho, acho um pouco vago e apressado, meio chato. As citações não são sempre muito honestas, confesso que Deleuze e Guattari estão ali mais pra fazer a diretora da escola se sentir tão burra quanto eu me sinto os lendo. Mas eu sinto que já devia ter publicado esse projeto aqui a despeito do que eu penso dele. É o que veio a se tornar o Esses Games Violentos: Proibidão.
http://desenholivrenafase-blog.tumblr.com/
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Escola Estadual de Ensino Médio Tom Jobim
Prof. Pedro Paiva
da área Linguagens e suas tecnologias, disciplina Arte
Projeto pedagógico:
Oficina de narrativa em videogame
Porto Alegre, 28/04/2015
1. Introdução
O presente projeto tem por objetivo apresentar os fundamentos e métodos que
constituem o trabalho “oficina de narrativa em videogame”, a ser posto em prática com as
diferentes turmas de ensino fundamental e médio matriculadas na Escola Tom Jobim. O
projeto está dividido em três partes, sendo a primeira o esclarecimento da metodologia e
os dois seguintes as diretrizes teóricas do trabalho: Crime e infração: a performance além
do fato, onde estão justificadas as escolhas de caráter curatorial do educador em relação
às contribuições dos educandos, e Hiper-realidade e simulação: o videogame como
superimagem, onde está justificada a escolha do videogame como a linguagem central do
interesse do trabalho.
2. Metodologia
A metodologia a ser apresentada aqui é uma adaptação de oficinas anteriormente
ministradas por este professor em outras ocasiões e contextos, sendo feitas as alterações
necessárias para os recursos disponíveis. É importante salientar que esta metodologia
está em permanente processo de autocrítica, sofrendo os efeitos do contato com cada
turma em específico. Contudo, a estrutura básica é a seguinte:
No primeiro momento, os educandos são convidados a fruir os jogos produzidos
por outras turmas deste professor em experiências anteriores. Ao professor cabe
enumerar os elementos básicos que constituem um jogo de computador, utilizando os
jogos observados como ilustração: a história ou narrativa que é apresentada ao longo das
cenas do jogo, em aproximação com conceitos de teatro e cinema; a mecânica ou
funcionamento do jogo, como se dão as relações de movimento e progresso nessa
narrativa, em aproximação com conceitos da matemática e da física; os gráficos ou
elementos visuais do jogo, como se compõe uma cena de modo a apresentar mecânica e
narrativa ao jogador com suficiente clareza, observando o uso de técnicas e conceitos das
artes visuais (contraste, dimensões e perspectiva, neste caso, considerando o conteúdo
trabalhado anteriormente com cada turma) e o cenário também presente no teatro e no
cinema; música e sonoplastia, de que forma a sonoridade de um jogo pode contribuir para
o avanço da narrativa ou maior imersão na mesma, ou para a melhor percepção dos
eventos mecânicos (um som "de moeda" sinaliza a aquisição de um objeto precioso no
jogo, por exemplo).
No segundo momento, após a fruição, o grupo deve entrar em consenso sobre a
história que será contada através do jogo. Tendo o consenso, é feita a divisão da história
em três partes: começo, meio e fim. Os alunos então se dividem em grupos menores para
produzir, com lápis e papel, os elementos visuais que irão compor uma das três cenas
correspondentes. Nesse momento são retomados e explorados os conteúdos abordados
nas aulas anteriores e durante a fruição do jogo. Mecânica e elementos visuais devem ser
definidos neste momento.
No terceiro momento, com o auxílio de um computador (contendo versões
digitalizadas das imagens produzidas pelos educandos) e um datashow, é realizada a
programação do jogo. Para tanto é utilizado o programa Multimedia Fusion 2, que permite
construir os eventos do jogo com simples articulações lógicas. Ao professor cabe
apresentar a interface do programa e exibir um passo a passo do processo de
programação dos principais eventos. Este momento pode assumir caráter mais expositivo
ou mais participativo, dependendo do perfil de cada turma em específico. Tendo sido
percorridas, com os alunos, todas as cenas do jogo por dentro da interface de
programação, está concluída a construção do jogo, cabendo ao professor fazer as
correções necessárias e compilar (tornar o jogo um arquivo independente do programa
em que foi criado) o software final, próprio para distribuição por quaisquer meios
disponíveis.
3. Crime e infração: a performance além do fato
Para o trabalho pedagógico com o público das unidades socioeducativas, há
sempre o crime - ou a infração, se quisermos uma abordagem juridicamente correta -
como vetor discursivo. Para o educando da escola socioeducativa, urge fazer o
comentário do crime, performar o criminoso - por isso utilizamos neste texto o conceito de
crime e não infração; o crime é muito mais do que o crime, enquanto a infração
dificilmente extrapola seus limites jurídicos. A infração encontra uma potência de crime
apenas quando está composta com o menor infrator, sujeito que performa. É tarefa do
educador escolher entre dois opostos, ou vacilar entre eles: silêncio e comentário. Qual
oferece matéria mais rica para o trabalho pedagógico? É Paulo Freire que responde:
"A questão da identidade cultural, de que fazem parte a
dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é
absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é
problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente
com a assunção [assumir-se] de nós por nós mesmos. É isto que o
puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na
estreita e pragmática visão do processo.
A experiência histórica, política, cultural e social dos homens
e das mulheres jamais pode se dar "virgem" do conflito entre as
forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos
indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor
daquela assunção. A formação docente que se julgue superior a
essas "intrigas" não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos
obstáculos."
(FREIRE, 2011)
A busca pelo crime não é uma busca pela infração. As razões econômicas são
parte da força motriz que aproxima o jovem da ilegalidade, mas não constituem o todo
dessa busca. Tampouco a maldade - que descartemos essa ideia logo de início. Há, para
usar uma expressão de Freire, uma identidade cultural operando nessa dinâmica. Há, na
busca pelo crime, um processo de empoderamento do jovem marginalizado: ser "o
bandido", "o criminoso", o impede de ser ninguém, o impede de ser aquele que fracassou,
o impede de ser "a vítima". Quando o jovem constrói para si uma performance de crime,
ele o faz com arte, articulando um repertório estético, um vocabulário plástico, gestual,
sonoro e simbólico preexistente. O jovem compõe para si a imagem do crime, ele veste o
crime para não permanecer nu. Em consequência desse gesto, no aprimorar da imagem
que vestiu, o jovem comete a infração. Não é o ato do crime que torna criminoso, mas o
tornar-se criminoso conquista uma performance perfeita no ato do crime. A infração é o
pico da experiência na performance do crime.
A infração (como ação exterior à legalidade) está para o crime (como performance
estético-discursiva) assim como a guerra está para o conceito de máquina de guerra em
Deleuze e Guattari: 'Para falar como Aristóteles, dir-se-ia que a guerra não é nem a
condição nem o objeto da máquina de guerra, mas a acompanha ou a completa
necessariamente; para falar como Derrida, dir-se-ia que a guerra é o 'suplemento' da
máquina de guerra." (DELEUZE, GUATTARI, 2012)
O aluno não merece ser despido novamente, isso me parece degradante. Escolho
o comentário, e através dele me parece mais possível que a infração não cruze a imagem
do crime novamente. É no desvio positivo da imagem do crime que podemos vislumbrar
trajetórias de vida mais distantes da infração. É responsabilidade do professor, presumo,
não anular o crime da performance, ou despir o aluno de sua identidade cultural; se trata
de dar novo território ao pico da experiência na performance do crime - se não substituí-lo
por algo, pelo menos diluir a potência de crime, pulverizá-la desde a infração sobre outros
pontos, construindo novos acúmulos ao redor do pico e tornando-o menos vertiginoso,
menos sedutor, menos definidor da performance. Não se trata de propor ou encorajar a
infração, mas de estar receptivo ao repertório dos educandos, sendo ou não um repertório
do crime. Trata-se de um duplo trabalho: acolher e reterritorializar, receber e ressignificar
– não o professor sozinho, para depois fornecer aos alunos uma síntese pouco
significativa, mas propor uma experiência de reterritorialização do crime que possa ser
atravessada por professor e alunos em trabalho conjunto, sem que do professor se perca
o papel diretivo. A autoridade diretiva do professor sobre a experiência coletiva torna-se
mais legítima na medida em que se torna menos imediatamente visível para os alunos
enquanto relação hierárquica. O corpo da autoridade sendo apenas o corpo que proíbe,
vigia ou elimina se torna um inimigo, mero agente da força coerciva, e nesse movimento
perde sua autoridade. A tarefa pedagógica é tão mais subterrânea quanto menos dócil é o
corpo do educando. É uma questão de profundidade.
4. Hiper-realidade e simulação: o videogame como super imagem
A hiper-realidade pode ser descrita como uma situação, via de regra ficcional ou
espetacular - não no sentido hiperbólico, mas no sentido debordiano (as relações sociais
mediadas pela imagem [DEBORD, 1997]) - que amplia, numa potência que pode ser
ilimitada, a disponibilidade dos objetos. Entendamos aqui os objetos como tudo aquilo que
os sujeitos podem ler, fruir, consumir ou utilizar; objetos da ação humana, aquilo que está
sujeito à ação humana ou ao encontro com a atenção humana. Os objetos de uma hiper-realidade
podem, de certa forma, se tornar mais reais do que são seus equivalentes na
realidade, pois na hiper-realidade é possível encontrá-los simultaneamente sob diversos
ângulos ou eternamente num mesmo momento congelado, estando eles submetidos a
luzes impossíveis, sons impossíveis, durações impossíveis etc.; relações que estão indisponíveis na realidade. O
objeto hiper-real é o objeto aumentado, podendo se tornar infinitamente mais sedutor (e
mais convincente porque mais "perfeito") do que o objeto real - é nesse acontecimento
que está o perigo para Debord, mas tal perigo para nós constitui peça-chave numa
estratégia pedagógica que busca enfraquecer a força sedutora da infração. Um uso
otimista de uma constatação pessimista, poderíamos dizer simplificadamente.
Por que videogame? Se há na performance do crime uma imagem do crime,
encontrando-se na ação infratora o ponto culminante da legitimação da performance, o
videogame enquanto simulação hiper-real da ação infratora pode fornecer uma imagem
aumentada ou melhorada dessa ação. É no caráter simulacional do videogame que
podemos canalizar os afetos destrutivos dos educandos, suas narrativas de destruição.
Não há o mesmo efeito na proposição autoritária do comentário, um "falaremos disso" que
reduz a ação do educando a mero obedecer de um procedimento. Paulo Freire ficaria
triste.
É vital que não nos enganemos: aqui não há uma ingenuidade que pensa o
videogame como total substituto da infração, mas é de esperança que estamos falando,
um pouco como a encontramos em todos os momentos da socioeducação. Espera-se
algo do adolescente, e ao socioeducador não cabe a decisão que é apenas do
adolescente. Mas é responsabilidade do socioeducador - e também do professor que o é
nesse contexto - propor outros horizontes para o olhar do adolescente. Esses outros
horizontes, no entanto, não passam de miragens quando apenas relatados pela
autoridade que viu por si, mas não fez a analogia necessária para a significação do
adolescente. Se o crime é algo mais além da infração, esse algo mais pode ser
encontrado no exterior da infração, evitando-a. Poesia do crime, pintura do crime, cinema
do crime, videogame do crime: nada disso é a infração. Traduzir o crime do fato da
infração para a linguagem, transcriá-lo sob outras regras de legitimação. Walter Benjamim
falava sobre a tarefa da tradução: é preciso, ao traduzir do grego para o alemão, não
germanizar o grego, mas helenizar o alemão (CAMPOS, 2013). Em outras palavras: é
preciso compreender as regras que constituem o original, considerando a importância
dessas regras na constituição da força do texto, buscando reorganizar esse sistema de
composição dentro de um outro. Saindo do abstrato e voltando para o concreto:
Recuperar o jovem infrator não é retirá-lo do crime para o não-crime, não é retirá-lo do
grego para inseri-lo no alemão, mas recriar o crime onde a infração não esteja disponível,
recriar poesia e sintaxe onde o idioma não esteja disponível. A infração não é simples erro
cometido, mas regra de conduta sob um sistema de poder localizável.
Para não falarmos de esperanças e possibilidades futuras, apenas: na gênese do
hip hop encontramos o sucesso da dinâmica que venho tentando descrever neste
documento. Durante os anos 70, houve uma gangue em Nova Iorque reconhecida como
uma das mais brutais, os Black Spades. Um de seus membros mais conhecidos, Afrika
Bambaataa, inspirado pelas inovações estéticas na música negra norte-americana
introduzidas pelo jamaicano DJ Kool Herc, passou a utilizar seu prestígio para organizar
as primeiras festas de hip hop. A rivalidade que permeava as relações violentas entre as
gangues foi reterritorializada nas rivalidades do hip hop: duelos de rima, duelos de dança,
duelos de graffiti. A cultura do hip hop foi construída sobre a ideia de duelo, encontrando
na disputa estética o objeto aumentado da rivalidade belicosa. Houve um resultado
concreto da expansão do hip hop: diversas gangues pacificaram suas relações, e ainda
hoje o hip hop se mantém comentando o crime e o performando sem que praticá-lo de
fato se torne relevante para sua condição de verdadeiro.
Estas constituem as diretrizes da ação pedagógica aqui documentada.
5. Referências bibliográficas
CAMPOS, Haroldo de. Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013;
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997;
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 5.
São Paulo: Editora 34, 2012;
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.
Como alguém que procura trabalhar com a filosofia de Deleuze para compreender o fenômeno da imagem do videogame, agradeço muito pelo conteúdo.
ResponderExcluirÓtimo material, muito grato.
Obrigado, Thiago!
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