Traduzido por Pedro Paiva do original em inglês por Liz Ryerson.
[Nota do tradutor: Não é sempre que eu consigo fazer justiça aos originais com minhas traduções tão amadoras. Mas é que eu acho que tem pessoas que precisam ser traduzidas e eu adoraria poder pagar profissionais pra fazer isso direito e publicar coletâneas e tudo o mais, mas sou um quebrado. Então traduzo eu mesmo. Este texto sofreu represália por parte dos leitores de uma renomada publicação de esquerda, a Jacobin. Afinal, como ousam tratar de assuntos bobos como os videogames quando estamos aqui preparando a revolução? Pobres camaradas incautos... eu cortaria um dedo meu se grande parte dos idiotas neonazistas em Charlottesville não fosse gamer.]
Seria fácil reprovar Duke Nukem 3D, um jogo de ação em primeira pessoa lançado vinte anos atrás, por sua misoginia bizarra, ou seus ambientes planos como lâminas de papelão, ou suas frases de efeito afetadas, tiradas diretamente de filmes B como Evil Dead ou Eles Vivem. É tão visível o desespero por legitimidade cultural e aprovação dos jogadores que se torna quase doloroso encarar o jogo com olhos contemporâneos.
Seria fácil reprovar Duke Nukem 3D, um jogo de ação em primeira pessoa lançado vinte anos atrás, por sua misoginia bizarra, ou seus ambientes planos como lâminas de papelão, ou suas frases de efeito afetadas, tiradas diretamente de filmes B como Evil Dead ou Eles Vivem. É tão visível o desespero por legitimidade cultural e aprovação dos jogadores que se torna quase doloroso encarar o jogo com olhos contemporâneos.
O personagem de Duke Nukem era um monumento grotesco ao profundamente idiota niilismo hipermasculino - o único tipo de personagem que teria culhões pra enfrentar todo um mundo distópico, infernal, e vencer. Essa masculinidade definiu o futuro da indústria do videogame em geral.
Duke Nukem 3D veio de uma era em que os videogames ainda tateavam seu lugar na cultura, tentavam se definir artisticamente. Talvez por isso seja tão difícil descobrir o que exatamente o jogo tenta ser: é uma grande pilha maximalista de piadas, referências e tropos que nunca chegam a tomar alguma direção coerente. Referências ao julgamento de OJ Simpson e a sitcom Os Simpsons junto a um monte de pornografia gratuita e referências a filmes sem propósitos claros.
Mas parece óbvio que não há uma busca por expressão artística coerente além da pura satisfação dos desejos dos jogadores em ver todas as novas trucagens tecnológicas que eram possíveis na época. Não é exatamente difícil situar tudo do jogo no contexto cultural de 1996.
Mesmo assim, foi a engine de Quake, que debutou no mesmo ano de Duke 3D, que viria a se tornar modelo para as futuras engines gráficas tridimensionais, com seu suporte a ambientes 3D de verdade, modelos poligonais e aceleração de hardware 3D. Mesmo que a engine de Quake não tenha implementado muitos recursos menores que compunham a Build engine (a engine utilizada em Duke Nukem 3D).
As fases de Duke 3D exploram com entusiasmo todos os recursos da Build engine, precipitando os jogadores em cenários absurdos de alta interatividade, eventualmente requerindo uma certa destreza na resolução de quebra-cabeças e na navegação de ambientes para progredir.
Isso se mantém bem até hoje, apesar de tudo. Essas fases espaciais mostram uma riqueza de ideias, uma inventividade narrativa que praticamente nada do que você vê hoje em um FPS chega perto, mesmo com todas as vantagens tecnológicas. O conjunto de ideias que convergem nesse mundo blocudo, de baixa resolução e altamente abstrato das fases em Duke Nukem 3D se parecem muito mais com o espírito de brincadeira que permeia títulos como os Mario do que com os ambientes monótonos e hiper-realistas de um FPS contemporâneo de grande escalão.
A indústria tem dobrado a aplicação de uma espécie de medida de austeridade na arte de fazer jogos, particularmente nas últimas duas décadas. Muito disso pode ser atribuído ao rápido progresso tecnológico que a produção de jogos alcançou, resultando numa demanda de mercado sempre crescente. Anomalias no design e responsabilidades tecnológicas do passado tem sido implacavelmente impelidas pelos processos industriais que surgiram para compor uma abordagem ao design mais universalizada, de tamanho único. Um pouco disso pode também ter a ver com a busca incipiente do videogame por legitimidade, afastando-o dos elementos que o tornam único enquanto o aproxima de esquemas narrativos mais cinematográficos como, por exemplo, o uso das cenas pré-renderizadas evidencia.
Dois designers de mapa são creditados por projetar todas as fases apresentadas no primeiro lançamento comercial de Duke Nukem 3D. No total, 23 pessoas foram creditadas pela criação do jogo original. Enquanto isso, um pequeno exército de mãos trabalhou na sequência exaustivamente protelada: o Duke Nukem Forever de 2011.
Isso não é incomum. É o que define a indústria do videogame agora; imensas quantidades de trabalhadores descartáveis que se colocam à disposição em ambientes repletos de exploração.
Tudo isso é interessante também porque Duke Nukem 3D é um dos primeiros jogos que tentaram representar espaços modernos realistas num espaço mais ou menos tridimensional. E o modo como isso é feito é muito mais estranho e mais anárquico do que quase qualquer jogo mainstream de hoje.
É difícil jogar o jogo por muito tempo sem perceber como dispositivos de segurança estão em todo lugar nesse mundo. Câmeras, sensores laser, portas eletrificadas, armas sentinela e drones preenchem o cenário. E há inimigos do jogo como os policiais da LAPD que carregam shotguns, transformados em criaturas gigantes que parecem porcos (eles vestem uniformes com a sigla LARD).
Uma forte sensação de paranoia, eventualmente enfatizada por luzes dramáticas bem localizadas e algumas mudanças de humor violentas ao longo das fases. Tudo isso não é explicado pela ficção mínima que o jogo tem, fazendo tudo soar mais misterioso. A maioria dos lugares parece que está num estado de decadência ou que está prestes a desabar a qualquer momento. Já que o mundo está em desastre, não há nada particularmente reconfortante em ocupar determinado lugar, ou triste em explodi-lo.
Na história do jogo, todas as mulheres da Terra foram sequestradas pelos alienígenas. Duke Nukem, o cabeça-de-carne de segunda categoria com quem vamos jogar, precisa resgatá-las. Mas a despeito de serem a motivação primária pra salvar o planeta, as mulheres são apenas acessórias à experiência do jogo. As que aparecem, ora estão dançando fixas num lugar, pra que o jogador possa pagá-las pra ver uma pequena animação de striptease, ora estão presas em cápsulas aligenígenas de forma que não podem sofrer interação alguma (além de serem explodidas).
Essas mulheres estão ali apenas para ecoar a satisfação do público que o jogo busca cativar - na época, jovens meninos adolescentes - assim como uma grosseira técnica de marketing que busca ofender e estimular, diferenciando-se de outros jogos de ação 3D populares da época que não chegavam a ter um grau táo alto de tetas.
Mas o que é mais peculiar nisso tudo é como a história não faz nenhum esforço pra explicar o que aconteceu com os homens do planeta, a despeito de estarem completamente fora do jogo. A história, na verdade, se mostra mais do que indiferente em tentar explicar basicamente qualquer coisa pros jogadores. Mais ou menos, a inteireza da experiência do jogo acontece no momento, em cada exato momento do jogo, com nada além de algumas dicas no ambiente que contextualizam o que acontece.
Em muitos dos sonhos molhados apocalípticos onde estão situadas as ficções distópicas de hoje, há frequentemente algum sentimento de nostalgia em relação à velha ordem que havia antes do caos se estabelecer no mundo. Talvez as coisas pudessem ter sido diferentes, eles pontuam com tristeza, antes de se entrincheirarem completamente no desespero existencial. Mas não em Duke 3D - ali, a velha ordem é caos. Alienígenas estão utilizando tecnologia construída pelos humanos assim como os humanos fariam. Eles são os que mantém as cidades e gerenciam todos aqueles dispositivos de segurança. Eles são o Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD).
Isso porque os aliens em Duke 3D, no mundo ficcional do jogo, de forma fracamente velada substituem os homens humanos. Homens com poder e autoridade. Homens com acesso superior a recursos e tecnologia. Homens que estão nesse estranho paradoxo entre uma fraqueza ridícula e uma ameaçadora onipotência. Eles são o homem lagarto ocupando as posições de poder nas fantasias distópicas e também o estrangeiro assustador do outro lado da bala disparada em fantasias xenófobas e reacionárias. Homens como alienígenas são o desconhecido, criaturas detestáveis que obstruem a busca pela realização do sonho de um novo mundo; eles devem ser destruídos a qualquer custo.
Depois que o chefão morre, nosso herói chuta seu globo ocular gigante através de uma trave de futebol americano. Isso é bom.
Neste ato, Duke cai com tudo no elogio da clássica agonia masculinista auto-destrutiva - efetivamente a nossa recompensa por completar a primeira versão do jogo. Esse tipo básico de empoderamento fantástico com homens solitários e excepcionalmente viris conquistando o mundo está por toda parte, desde filmes do Arnold Schwarzenegger até música pop, desde esportes até os mais altos níveis de poder. Mas videogames, especialmente os FPS, fazem isso melhor.
Por mais que seja difícil pensar numa peça de mídia que entenda a si própria tão mal quanto Duke Nukem 3D, ele é esquisito demais pra ser reduzido a uma narrativa tão estreita.
Parece ter sempre alguma outra coisa se escondendo atrás da frágil fachada ficcional do jogo, não pulverizada pelos anos de austeridade que se seguiram na indústria do videogame. Enquanto os ambientes do jogo são construídos ostensivamente a serviço da fantasia de poder de seus jogadores, há muitos elementos que parecem um pouco dissonantes quando os observamos hoje. Há um senso de mistério - de que o mundo está além de qualquer explicação racional e as coisas são um tanto ameaçadoras e alienígenas demais pra que possamos esquecê-las completamente. É como se houvesse algum tipo de vitalidade escondida e conhecimento na penumbra dessa fantasia vazia, localizada em algum ponto distante demais pra ser acessada ou articulada seriamente.
Fases mais sombrias como "The Abyss", um desfiladeiro decadente fora de Los Angeles, ou "Dark Side", uma aventura perturbadora na lua, não poderia existir num jogo de hoje sem que a integridade da experiência fosse comprometida. Estes se inclinam a outro modo de ver o mundo, ainda que não perfeitamente articulado. Há algum tipo de esperança e humanidade espiando entre as frestas de um niilismo grosseiro.
Isso nos leva à terceira fase do jogo ("Death Row"), uma fuga da cadeira elétrica. Isso parece quase como punição pelas indulgências do cinema pornô e do clube de strippers apresentados aos jogadores nas duas primeiras fases. Mas é relativamente fácil para o nosso herói Duke simplesmente caminhar pra fora da cadeira e se armar para fugir da prisão onde ele está cativo. Isso é, afinal de contas, apenas a terceira fase do jogo. E nenhuma prisão pode segurar o Duke.
Mas talvez haja uma narrativa diferente se desenrolando aqui. Eu me lembro de um famoso conto chamado "An Occurrence At Owl Creek Bridge" de Ambrose Bierce: um homem escapa miraculosamente de seu destino fatal na forca e se embrenha numa aventura fantástica - além da realidade, além de seu próprio corpo, dobrando o tecido do tempo perante sua vontade. Mas na verdade ele não é capaz de escapar. Seu corpo permanece na forca e ele morre.
Na realidade, você não pode só levantar e sair andando da cadeira e conquistar os alienígenas que controlam nosso mundo, tudo isso sozinho. Para a grande maioria dos seres humanos no planeta, quando o Estado diz que você está morto, você está morto. Você permanece na cadeira e morre. O poder do Estado vence.
Esse é o poder que fantasias como Duke Nukem representam: usando de uma brutalidade machista, as forças opressivas do neoliberalismo que compõem a estrutura da nossa sociedade podem ser subjugadas e superadas. Duke não pode existir num mundo racional. Ele só pode existir num mundo que esteja cheio de contradições, linhas cruzadas, e velhos prédios desabando.
Seu mundo nunca é estável, e sempre está sob domínio do medo irracional do desconhecido e de suas caricaturas arquetípicas. Seu mundo nunca soluciona nenhuma de suas dissonâncias cognitivas, e algumas vezes nem percebe sua própria inclinação para a auto-destruição.
Mas Duke Nukem 3D revela isso apenas muito rapidamente antes de seguir se movendo. A fantasia não consegue suportar maior injeção de realidade, ou acaba se anulando. Esse mundo precisa continuar, como se nada tivesse acontecido, para que siga se sustentando. Esse mundo ainda é nossa realidade.
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