Traduzido por Pedro Paiva do original por Paolo Pedercini.
Comentários entre colchetes são do tradutor.
Indiepocalypse Now: Supermaximizando a Economia da Atenção na Era da Superprodução Cultural
Essa é a transcrição de uma apresentação que eu fiz no festival Indiecade Europe, em Paris. É meio que uma continuação do Rumo à Independência, uma fala que eu fiz em 2012 sobre os desafios do desenvolvimento de jogos independente.
No campo dos videogames isso está sendo chamado de Indiepocalipse.
Como lidar com um mercado indie saturado, insustentável financialmente?
Como podemos maximizar a felicidade dos desenvolvedores sem reduzir a diversidade de vozes?
Aviso: essa é uma falsa fala sobre negócios, eu não faço jogos comerciais e nem sequer sou bom em vender minhas coisas. Mas como professor eu estou constantemente pensando em que tipo de mercados e contextos meus estudantes vão encontrar quando se graduarem.
Comecemos com as boas notícias.
Uma batalha pela democratização da cultura.
Lá nos anos 70, vídeo-artistas e ativistas como Gene Youngblood imaginavam uma videosfera democrática, interativa e não-comercial. Essa videosfera se parece um pouco com nossa internet, ou o Youtube.
Visionários como Ted Nelson imaginaram novas formas de texto que deram mais poder ao leitor, como o hipertexto e as wikis.
Eles também defenderam a popularização das tecnologias computacionais. Computadores pessoais como libertação pessoal.
O primeiro livro escrito sobre computadores pessoais foi um fanzine e tinha um punho cerrado na capa.
O famoso jargão "aprenda três notas e monte uma banda" se tornou "hackeie um toca-discos e seja seu próprio produtor", "encontre uma fotocopiadora e comece sua própria revista" e por aí vai.
Foi uma ampla mudança cultural que estimulou as tecnologias digitais e as redes horizontais, e ao mesmo tempo foi acelerada por elas.
Em 2000 tivemos o primeiro chamado às armas por uma revolução contra as grandes companhias de games. Contra a tirania das publishers, suas práticas de trabalho exploradoras, seus jogos chatos que parecem todos a mesma coisa.
O mesmo espírito punk de inclusividade e criatividade ecoa na comunidade indie, especialmente entre as alas mais radicais dos alt-games e da cena queer.
É por isso que estamos aqui hoje. Por isso que o festival Indiecade existe.
Quando democratizamos os meios de produção e distribuição.
Deveríamos esperar uma proliferação de produtores e produtos culturais.
Nos últimos anos as pessoas tem falado sobre indiepocalipse em relação a uma série de indicativos, entre eles:
*O aumento aparentemente exponencial no número de jogos lançados.
*A diminuição nas vendas e receitas, mesmo quando levamos em conta a qualidade e as reviews.
*O desempenho comercial decepcionante de jogos aclamados pela crítica, jogos com anos de desenvolvimento. Aqueles que parecem ter feito tudo certo mas mesmo assim renderam abaixo do esperado.
Mas ninguém nos círculos indie prevê o desaparecimento do desenvolvimento independente.
Mas todos parecem concordar que o mercado independente está ficando mais saturado, quando comparamos com seus anos áureos, entre 2006 e 2012, o cenário descrito em Indie Game: the Movie.
Está mais difícil de se sustentar ou até mesmo fazer com que as pessoas prestem atenção no seu jogo.
Então não se trata de um apocalipse, é mais uma recessão, uma bolha, ou um ciclo de explosão e retração.
Em termos econômicos isso teria mais a ver com uma crise de superprodução.
Superprodução, segundo Marx, é uma das contradições inerentes ao capitalismo. É a causa de muitas crises, como a Grande Depressão.
Você tem superprodução quando mais mercadorias são produzidas do que podem ser vendidas com lucro.
Há muito investimento, muitas pessoas tentando capturar uma fatia do mercado.
Crises de superprodução não são novas nos games. Quando Pong virou uma febre, o mercado foi inundado com clones do jogo.
Em 1977 havia cerca de 500 consoles de pong diferentes, até que o mercado quebrou. A Atari sobreviveu graças ao Space Invaders.
Mas não durou muito. Em 1983 houve o segundo crash na América do Norte. Uma das causas foi a superprodução de software. Especialmente clones, sequências e licenças ruins como ET.
A epítome da crise aconteceu quando toneladas de cartuchos de Atari foram enterradas num deserto no Novo México. Uma lenda urbana que se provou verdadeira.
É claro que houve várias causas para essa recessão: na cultura, a oferta cria sua própria demanda. E a superprodução não é só o resultado de jogos demais.
Mas numa relação compleza entre oferta, demanda, preços, ciclos de investimento, mercados, nós sabemos uma coisa com certeza: quando o conteúdo é abundante, ele se torna barato, e o recurso escasso se torna o tempo.
Nossa capacidade de consumo não se estende indefinidamente. Nós temos capacidades cognitivas limitadas para processar cultura. E tempo livre limitado pra absorver mídia baseada em tempo.
E esse tempo de lazer é disputado por muitas indústrias.
Craidores de jogos não estão só competindo entre eles, mas também com a TV, com as redes sociais, e com as atividades sociais tradicionais.
Algumas das maiores mentes da nossa geração estão no Vale do Silício agora mesmo trabalhando em sistemas que aumentem a nossa dependência e níveis de procrastinação em suas plataformas.
Isso é conhecido por "Economia da Atenção", mas está mais pra "Guerra da Atenção".
Uma guerra para capturar cada fragmento de tempo, capturar nossos globos oculares, como dizem os publicitários.
Pra produzir histórias que consigam nos prender pelo tempo mais longo possível.
Na indústria você vai ouvir algumas vezes que é assim que as coisas são hoje.
Você tem que ser melhor, mais forte e mais esperto ao fazer e promover seus jogos.
Todo mundo tem a chance de ser famoso por 15 minutos. Muitos vão vender 15 cópias e desaparecer. É a lei do mais forte.
Eu tenho muitos problemas com essa visão darwinista.
Primeiro, isso é como penalizar os desenvolvedores com menos meios e privilégios: pessoas qua não podem arriscar centenas de milhares de dólares em um projeto de um game, ou investir anos de polimento e publicidade num produto.
Aqueles que não tem educação, capital social ou as conexões necessárias pra conquistar o sucesso porque não podem pagar o ingresso de uma conferência, ou porque eles não vivem na América do Norte ou na Europa.
Aumentar a diversidade de vozes, especialmente em contextos marginalizados, é a razão pela qual criamos uma cultura independente em primeiro lugar. Não podemos abrir mão disso.
Segundo problema, relacionado ao primeiro: esse cenário dá imenso poder aos filtros e porteiros.
É assim que o Google acumula poder, providenciando uma maneira de navegar num excesso de informação.
Hoje um empregado da Apple, Valve, Sony ou Microsoft pode basicamente determinar o sucesso ou fracasso de uma empresa com um clique, ou um título.
Isso não é bom. Não é um cenário favorável à independência dos criadores de jogos.
E não é como se as coisas fossem mudar porque a Apple, a Valve, a Sony ou a Microsoft ganham dinheiro por cada aspirante a desenvolvedor. Eles se dão muito bem com mercados saturados. Eles te fazem pagar pra se tornar um desenvolvedor, e tiram uma parte daquilo que você está fazendo - esteja você tendo lucro ou não.
Eu quero propor uma série de caminhos talvez tortuosos pra solucionar o problema da superprodução cultural.
Não são soluções, mas modos desviantes de abordar o problema e introduzir novas dimensões. Um convite pra repensar como, por que e pra quem nós fazemos jogos.
Primeira aproximação: ampliar o tempo livre. A elegância do slogan pelas oito horas (e o crescimento do consumismo) nos prendeu nessa ridícula ideia de que um terço das nossas vidas devem ser sacrificadas aos deuses da produção.
Em 1953, Guy Debord - o teórico situacionista - pintou este graffiti aqui em Paris.
Ele diz "Ne travaillez jamais", que quer dizer "Trabalhar Jamais".
O slogan antecipou o programa das contraculturas dos anos 60 e 70. A coisa não era sobre melhores salários, mas uma rebelião contra o trabalho mesmo. Especialmente o trabalho alienado das fábricas e escritórios.
Um slogan como esse pode parecer absurdo em países europeus onde o desemprego dos jovens é altíssimo (mais de 30% chegando até a 50%).
Mas com diferentes intensidades, o capitalismo sempre produziu massas de pessoas que trabalham demais e massas de desempregados.
Em nosso microcosmo isso pode ser traduzido em jogadores que não tem dinheiro pra comprar jogos e jogadores que não tem tempo para jogá-los.
Então nós temos que ler o slogan como um apelo para o reequilíbrio do tempo de trabalho.
Trabalhar menos cada um, mas empregar todo mundo.
Isso sem perder o objetivo utópico do fim do trabalho via automação absoluta.
Em todas as economias capitalistas, o tempo de trabalho diminui conforme a produtividade aumenta. Então nós deveríamos receber de braços abertos todas as inovações que aumentam a produtividade per capita.
A chave é fazer com que os benefícios de uma produtividade aumentada sejam distribuídos de forma justa, e não cheguem só nos chefes, ou quem quer que seja que controle os robôs ou a inteligência artificial.
A Renda Básica Universal é uma ferramenta possível pra atingir essa redistribuição.
Desvinculando a renda do trabalho.
(Neste gráfico nós podemos ver como os EUA são quase tão produtivos quanto muitos países europeus, mesmo quando os americanos trabalham por mais horas. Isso é o que acontece quando você tem sindicatos frágeis e não tem partidos de esquerda.)
No gráfico dá pra ver que há um potencial de libertação do tempo nos países em desenvolvimento. O que me leva à próxima aprocimação...
Novos Mercados. Historicamente, países dominantes procuram novos mercados pra absorver seu excedente - e pra extrair recursos naturais. Foi assim que o capitalismo se expandiu até englobar todo o mundo.
Essa expansão foi levada a cabo agressivamente até a abertura do mercado japonês em 1853. O Japão era um país isolacionista até os Estados Unidos aparecerem com navios de guerra no porto de Tóquio. Eles basicamente disseram: comecem a importar seus excedentes ou então nós vamos atirar em vocês.
Na segunda parte do século XX essa expansão ocorreu pela imposição dos acordos de livre comércio, ou a expansão das zonas de comércio como a União Europeia.
Mas agora que os mercados estão globalizados talvez haja menos imperialismo, menos extrativismo, na busca por novos jogadores.
(Aqui vocês podem ver garotos sírios jogando videogames americanos em que você atira em terroristas do Oriente Médio que se parecem muito com eles, isso é uma merda.)
Outro maneira poderia ser: colaborações com desenvolvedores de economias emergentes. Ao invés de tratar a índia ou o Oriente Médio como países para sugar produção ou como mercado pra jogos muito ocidentais. Podemos estabelecer parcerias e trocas.
Nós podemos aprender o que faz um jogo ter apelo em outro país, trocando conhecimento e recursos.
Indies podem se sair bem em mercados não-ocidentais porque nas economias emergentes o hardware é um grande limite. Empresas AAA são forçadas a explorar a última geração de hardware para contentar os consumidores ocidentais, mas pequenos jogos indie podem ser acessados via máquinas mais lentas e menos conectadas.
Próxima aproximação: expandindo a esfera de jogo.
A ideia de jogar videogames enquanto se faz sexo é um tanto ridícula. Mas eu acho que é só porque não temos uma maneira ergonomicamente boa pra fazer isso. Há alguns protótipos estranhos mas não há jogos ou controles desenvolvidos especificamente pra isso.
Se você surgir com um jogo que pode ser jogado enquanto se faz sexo, você pode criar um novo nicho, um novo gênero, talvez uma nova indústria.
A história dos videogames é uma história de conquistas. Uma conquista de novos espaços em nosso cotidiano.
Os games nasceram em restritos laboratórios de pesquisa. Eles eram feitos e jogados quase em segredo porque não era pra isso que os computadores serviam.
Então eles se mudaram para os fliperamas e parques de diversão, capturando o tempo livre antigamente dedicado às diversões mecânicas.
Daí surgiram os consoles domésticos que podiam ser ligados à televisão. Com isso penetraram um campo de batalha importante na economia da atenção: a sala de estar.
Videogames se tornaram domésticos e para toda a família.
Consoles contemporâneos estão tentando substituir a televisão completamente, através da integração com serviços de tv-on-demand [Netflix e similares].
A Atari fez os primeiros gabinetes e consoles populares, entendendo a importância de capturar as novas bacias de tempo lifre.
Eles tentaram colocar gabinetes em estações de trem, até mesmo em salas de espera de médicos e veterinários - alegando que serviriam pra acalmar crianças.
Fabricantes de computadores domésticos competiram com os consoles de videogame assegurando que os primeiros eram muito mais do que máquinas de jogo.
Uma coisa com a qual você pode fazer sua lição de casa ou sua contabilidade. Conquistou os estúdios, os quartos e os escritórios.
Tempo de trabalho e tempo de lazer começam a se entrelaçar.
Mas foi só com a popularidade dos aparelhos portáteis, e os smartphones mais tarde, que a possibilidade de jogar literalmente em qualquer lugar e a qualquer hora se tornou real.
Você poderia jogar seu Game Boy enquanto viaja, em vez de conversar com sua família.
Você poderia jogar sozinho mesmo que não tivesse acesso à televisão.
A propósito, isso é uma propaganda real do Game Boy Advance.
É claro que essas propagandas são exageros cômicos, mas eles revelam a maior fantasia da indústria do videogame: colonizar cada momento das nossas vidas.
Essa questão do contexto é o que a indústria do VR não consegue descobrir.
Onde vive o VR?
Onde é aceitável ficar completamente cego e vulnerável?
Será que a demografia dos jovens urbanos nos seus vinte e poucos anos tem acesso a salas que possam se tornar playgrounds de VR?
E com o que se parece o ritual de se vestir com todo esse equipamento de VR?
Em outras palavras, nós temos que nos perguntar: quais são os espaços e situações que ainda podem ser conquistadas pelo jogo?
Por exemplo: americanos gastam 290 horas por ano dirigindo. Muito dessa atenção é parcialmente ocupada pelo rádio e pelos podcasts, que não exigem a visão.
Mas parece que carros automáticos, no momento em que libertarem as mãos dos motoristas, vão se transformar em cápsulas móveis para consumo digital em geral. Incluindo videogames.
E talvez alguns jogos funcionem melhor do que outros em carros.
O capitalismo rompeu com as rotinas agrárias, acabaram com a diferença entre o dia e a noite graças aos turnos fabris.
A última fronteira é o sono. Nós gastamos um terço das nossas vidas dormindo, e quando dormimos não podemos consumir nem produzir.
Jonathan Crary, em seu livro 24/7 observa as técnicas desenvolvidas pelos militares para reduzir o tempo de sono de pilotos e astronautas.
Ele antecipou que em breve isso contaminaria a vida civil, numa tentativa de criar o consumidor e o trabalhador perfeitos, que nunca dormem. A onipresença das telas portáteis e das notificações em tempo real se encaminham nessa direção - talvez você já tenha sido acordado por uma notificação do Twitter que veio do outro lado do mundo.
Será que o jogo pode conquistar a fronteira do sono primeiro?
Aplicativos inteligentes já estão começando a chegar nas nossas camas e extrair valor do nosso sono, monitorando e otimizando nossos ciclos.
Então não é lá um grande salto.
Será que podemos fazer jogos que possam ser jogados enquanto dormimos?
Podemos fazer jogos que afetam nossos sonhos?
Talvez os jogos já estejam se expandindo por esse território.
Social games como Farmville nasceram da simbiose com as redes sociais e introduziram um novo tipo de medição do tempo de jogo que se mistura com o tempo real das nossas vidas.
Jogadores ambiciosos, ou viciados em redes sociais, acabam organizando seus dias de acordo com o ritmo do jogo. Eles estão sempre jogando.
Os jogos podem fragmentar e fracionar nosso cotidiano ainda mais, com o objetivo de extrair mais tempo de jogo da atenção limitada que podemos dar?
Idle games como Cookie Clicker ou Neko Atsune, ou jogos mais difusos como Pokemon GO adicionam uma camada de jogo que não requer nossa total atenção constantemente.
O antagonista clássico do jogo é o trabalho. Mas assim como nós, os jogos conseguem se camuflar nos locais de trabalho ou nas salas de aula.
Este projeto se chama "Não vê que estou ocupado?". É uma coleção de jogos feita pra ser jogada em segredo no trabalho. Eles parecem aplicativos ordinários de escritório como Word ou Excel pra que o seu chefe não os note.
É um pojeto satírico que planeja roubar horas pagas do capitalismo.
Mas também é uma proposição interessante: como projetar jogos que possam ser jogados efetivamente e em segurança no local de trabalho?
Novos jogadores.
É difícil quantificar jogadores [Paolo fala em gamers, mas no contexto brasileiro a palavra tem uma conotação muito mais identitária, por isso optei por "jogadores" na maior parte das situações], porque muitas pessoas jogam casualmente mas não se identificam como gamers.
Nos Estados Unidos, onde a informação é coletada regularmente, cerca de 40% das pessoas joga videogames por pelo menos 3 horas durante a semana. É muito mas ao mesmo tempo não.
Podemos inverter o problema e dizer: isso não é uma questão de saturação, a gente apenas faz jogos que 60% das pessoas não quer jogar.
Eu não consigo achar nenhuma pesquisa sobre por que as pessoas não jogam videogames ou por que algumas pessoas jogam menos videogames quando envelhecem (alguém precisa muito coletar esses dados).
Mas anedoticamente eu diria que, quando você é jovem, você geralmente tem menos dinheiro pra gastar com jogos e mais tempo livre.
Essa relação se inverte conforme você envelhece: você começa a trabalhar ou formar uma família, comprar jogos talvez não seja problema mas achar 60 horas pra jogar Final Fantasy fica mais difícil.
Os jogadores com um monte de tempo pra gastar são também aqueles que tem tempo pra reclamar quando os jogos são curtos demais, deixam reviews negativas ou pedem o dinheiro de volta quando não recebem o valor quantitativo que esperavam.
As empresas de videogame AAA tendem a ouvir esses jogadores.
Eu acho que indies são mais propensos a criar títulos para outros tipos de jogadores. O jogador que valoriza mais o seu tempo.
O que parece ser uma saturação nos revela que há uma pressão para mudança na relação entre tempo de jogo e preço gasto pelo jogo.
Essa expectativa é construída culturalmente, e podemos mudá-la através do discurso.
Pessoas não vêem problema em gastar 15 dólares com um filme de 90 minutos ou centenas de dólares por breves minutos de entretenimento na Disneilândia.
Nós podemos fazer um apelo pela apreciação de experiências curtas porém mais cheias de significado, mais densas, mais intensas.
Minecraft foi tremendamente bem-sucedido com as crianças. Provavelmente por acidente: ele é muito como um brinquedo; ele pega um espaço outrora ocupado pela LEGO (que foi se tornando mais e mais um brinquedo fechado em possibilidades); Minecraft é estilizado, não muito violento, e tem um quê de educativo de forma que os pais aprovam.
Minecraft no modo um jogador está baseado em arquétipos que se relacionam com o repertório infantil como o medo do escuro e a sensação reconfortante de poder construir pequenas fortalezas e abrigos que você pode usar pra se esconder dos monstros assustadores [outras gerações fizeram isso com cadeiras e lençóis].
Mas o quão cedo é possível começar a jogar videogames? Com um ano de idade?
Seria possível fazer videogames para quem ainda não nasceu?
Fetos se movem, reagem a estímulos externos, nós podemos mapeá-los via ultrassom...
Seria possível fazer um jogo cooperativo para fetos e futuras mães.
E que tal videogames para idosos?
A geração nascida depois da Segunda Guerra Mundial, os baby boomers, estão se aposentando em rebanhos.
Isso provavelmente terá um profundo impacto nas economias ocidentais, no que tange as pensões e no mercado de trabalho. A indústria dos cuidadores de idosos está em explosão.
Para os desenvolvedores de jogos, isso abre um novo terreno para o tempo livre.
Mas como fazer jogos que atraiam pessoas que nunca jogaram videogames em toda a sua vida?
Os picaretas do free 2 play estão construindo impérios ludibriando sua avó com porcarias virtuais. Eles tiram vantagem da falta de letramento dos jogadores idosos.
Eu acho que sua avó merece mais do que joguinhos de cassino e esquemas manipulativos como o free 2 play.
Temos um desafio fascinante para o design de jogos.
Muito do que entendemos por videogame deve ser questionado.
Por exemplo: a alfabetização para os controles e a importância da coordenação entre olhos e mãos.
Nessa foto eu me divirto com os sorrisos que se transformam em esgares esquisitos. Mas sou exatamente assim quando jogo Shadow of Mordor. [Também dá pra notar que os jogadores olham pros controles e não pra tela.]
Aqui os indies tem uma vantagem.
Porque fazer jogos para idosos requer rejeitar muitos dos tropos que são dominantes no AAA.
Requer que exprimentemos com novos gêneros.
Criando não só controles alternativos (e podemos aprender muito não só com a cena de controles alternativos mas também com as pesquisas em interação de pessoas com deficiência e computadores) mas também jogabilidades alternativas.
E talvez precisemos procurar um tipo diferente de nostalgia.
Eu desafio vocês a criar jogos com seus pais ou avós.
Jogos que possam falar com sua condição. Jogos sobre estar hospitalizado, exilado em asilos, sobre perder agência enquanto membros da sociedade.
Talvez requira alguma pressão pra colocar videogames lá dentro. Mas programas de livros para prisioneis já existem, e há alguns jogos de tabuleiro e videogames até mesmo em Guantanamo.
E já existe um gênero de jogos para bichos nos ipads.
São similares aos primeiros jogos para humanos: reação muscular, coordenação olhos-mãos. Podemos extrair mais disso?
Podemos criar jogos que permitam interação entre humanos e não-humanos?
Este projeto é "Playing with pigs". Uma colaboração entre algumas universidades holandesas, gamemakers independentes, e ativistas da causa animal.
Na União Europeia, animais de fazenda devem ter algum tipo de entretenimento (normalmente são brinquedos simples como cordas para serem mastigadas), há um mercado em potencial aí.
E videogames para plantas?
Eu acredito que a popularidade do streaming, dos e-sports, e dos vídeos de let's play estão relacionados a essa questão da economia da atenção.
Quando você não tem tempo pra experenciar um jogo, você pode pelo menos ver uma videoconferência disso. Demanda menos atenção, menos tempo, e produz o mesmo sentimento de pertencimento a uma comunidade. Talvez até mais, porque é um uso social do videogame.
Talvez a próxima fronteira seja jogos que que não precisam ser jogados.
Jogos que você pode ver online enquanto faz outras coisas.
Jogos jogados por inteligências artificiais (Salty Bet).
Ou os hipnóticos jogos auto-jogáveis de Ian Cheng.
Ou o incrível mod de GTA San Andreas, Deer Cam, de Brent Watanabe.
Talvez o próximo passo seja mesmo fazer com que inteligências artificiais joguem por nós.
Isso é o que o Google e muitos pesquisadores de IA estão fazendo. Talvez isso chegue nos amadores em breve.
Ou esse promissor projeto pelo artista e game designer Devine Lu Linvega.
Minha última proposição é ainda mais fundamental.
Todos nós sabemos que nem toda a cultura é para ser lucrativa. A cultura tem sido produzido em escala industrial apenas desde o último século.
E até na era moderna, muitos trabalhos considerados obras-primas não foram sucesso comercial.
Mais importante: um excesso de cultura nunca é um desperdício, como um excesso de carros.
Então quem sabe a melhor solução não esteja na relação entre oferta e demanda. Mas em libertar os jogos e toda a cultura da tirania do mercado.
Há muitas maneiras de seguirmos esse caminho.
Financiamento público para jogos: considerando a cultura como um bem comum.
Qualquer coisa que seja financiada publicamente pode ser oferecida de graça. Como televisão pública ou pesquisas científicas financiadas por dinheiro público.
Patrocínio de baixo para cima como Patreon. O Patreon permite que você sustente artistas de que você gosta sem precisar comprar produtos.
Ou, para voltar a questão pública: Renda Básica Universal, estado de bem-estar social, e redução da jornada de trabalho.
Isso nos daria mais tempo para atividades auto-motivadas. Incluindo aí a cultura livre.
Definitivamente, se nós como uma sociedade definimos que videogames são importantes, e o acesso à cultura é um direito, podemos distribuir recursos de forma a suportar uma produção mais ou menos difusa de videogames em vez de deixar isso à sorte de um mercado ineficiente e exclusionário.
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