Hoje vamos falar sobre comunidades e videogame. Pra começar, vou pegar emprestada uma definição de Yuk Hui. Ele diz o seguinte:
Uma comunidade humana é muito mais do que a soma dos agentes humanos que a constituem; ela também inclui o ambiente e outros seres não humanos.¹
Sem deixar de celebrar as comunidades online, quero fazer um convite pra pensarmos as suas insuficiências, e como essas insuficiências se relacionam com as proibições das cidades capitalistas, que lhe são anteriores. Mas antes eu vou fazer um relato, sobre como eu tenho percebido o videogame independente, que é onde eu componho comunidade.
Assim como no streaming, o desenvolvimento independente tem uma espécie de cena, de atores, podemos chamar essa cena de comunidade. Mas essa comunidade do indie hegemônico nunca me convenceu, e parecia que quando falávamos de comunidade, estávamos falando de coisas diferentes. Tem um post no meu blog, chamado Comunidade VS Community², que fala o seguinte:
Fazer o community building, no jargão empreendedor, significa garantir atenção pros seus jogos, estabelecer dominância num mercado de gente desesperada por um pouco da atenção que você acumula. É uma economia do puxa-saquismo, mesmo. A comunidade quer o seu lugar e você não quer cair para a comunidade.
Uma perspectiva de esquerda não está preocupada com o mercado, mas com a sobrevivência das pessoas. Se essa sobrevivência passa pelo mercado e esse mercado não é sustentável, não é acessível para todos, então há um problema de estrutura. O liberal vai propor que é só uma questão de técnica, de compreensão das tendências e de talento em community building (que não mexe na estrutura, apenas abusa de uma estrutura já disfuncional). Em outras palavras: o liberal vai dizer que a miséria produzida pela estrutura é culpa individual daquele que não é talentoso em operar esse abuso. [Então ele acaba justificando a exclusão.]
A tarefa criativa da esquerda no videogame independente seria propor esses outros jeitos de sobreviver, de se organizar em comunidade.
Antes de continuar, só pra dar uma definição de esquerda e direita, que não tem diretamente a ver com partidos e candidatos. A definição é um pouco grosseira e super abrangente, mas vai ter que servir pra hoje. Pra direita, a sociedade é um acessório do mercado. Pra esquerda, o mercado é um acessório da sociedade. No capitalismo, as únicas coisas das quais não se abre mão, ou seja, não se mata nem se deixa morrer, são aquelas que tem valor no mercado. E algumas coisas são lucrativas como imagem mas descartáveis quando vivas, o que deixa tudo mais confuso.
Outra coisa que me incomodava no indie liberal era a construção de uma cena que não fazia contato com os jogadores locais, só com outros indies. Não faz sentido uma cultura local que ignora o local, focando num público-alvo que nem está presente, construindo a comunidade, e muitas vezes é um público gringo ideal, anglófono, gamer, usuário da Steam. A cena indie liberal, então, não rompe com o funcionamento das plataformas online, só as continua num ambiente offline que é controlado pelos mesmos atores que são fortes no mercado, ou seja, na Steam, nas redes sociais, em determinada plataforma que é fechada e pertence a algum bilionário gringo. Quando a comunidade não tem poder político, não tem como viver com liberdade no solo que pisa - o que é o caso das plataformas online - a comunidade se torna algo a evitar, um lugar onde não queremos cair, de modo que o sonho é estar acima dela, operando seu abuso, nos lugares de poder. Paulo Freire explica.
Essa falta de consciência sobre a não-naturalidade das redes online desenvolve, na gente, uma tendência a imitá-la fora dessas redes, o que significa fortalecê-las. Uma rede, de acordo com Milton Santos³, não é homogênea, porque ela é disposta sobre as irregularidades que já estavam instaladas. Por isso que o usuário da internet que é negro vai experimentar o mesmo racismo que já estava instalado na cidade, ou até intensificado, porque o offline e o online se confirmam, se validam reciprocamente e se reforçam. A tendência de uma rede, planejada como se fosse homogênea mas não sendo, é agudizar as injustiças já instaladas. A gente pode imaginar um lençol cobrindo uma cama cheia de cobras e lagartos: os volumes vão se formar, o lençol não vai eliminar as cobras e lagartos que estão debaixo. O Milton Santos vai explicar o poder hegemônico, do capitalismo global, a partir de verticalidades e horizontalidades: as verticalidades tentam colonizar tudo aquilo que sua rede pode percorrer, e as horizontalidades reagem ao poder vertical se conformando a ele ou escapando nas zonas cegas entre os pontos e linhas da rede, que tendem a ser cada vez menores. Nessas zonas cegas estão os que insistem na manutenção de modos de vida desajustados, não lucrativos. São as culturas de resistência, que teimam em não se deixar descartar necropoliticamente. O coletivo TIQQUN diz uma coisa muito interessante sobre as resistências, que é o seguinte: a unidade humana elementar não é o corpo - o indivíduo -, mas a forma-de-vida⁴. Isso significa que um indivíduo pode lidar de forma conformista com uma predação, e continuar vivo mesmo que tenha sido sacrificada uma forma-de-vida, talvez ele tendo sido o último dos seus.
Mas o se conformar ou não se conformar não é binário, sempre-sim e sempre-não, e as religiões afro-brasileiras sincréticas são um bom exemplo de como as culturas de resistência podem garantir que uma forma-de-vida continue mesmo sob predação, investindo no quase-sim ou quase-não. Como seria a forma sincrética de um videogame resistente, mais do que independente?
Gilbert Simondon⁵ diz que tudo aquilo que existe, ou seja, tudo aquilo que a gente pode reconhecer e dar nome, passa por um processo de individuação - se torna indivíduo. O indivíduo estaria permanentemente em formação, mantendo em si um potencial de se tornar outra coisa - a continuidade da existência da coisa é um processo de atualização de seus potenciais. Ser é preservar a possibilidade de vir a ser outra coisa. Não há energia na estabilidade total e completa, porque nesse estado o indivíduo se desagrega e deixa de ser. Por isso que o fascismo, no nosso caso o bolsonarismo, é tão apaixonado por morte: porque é apaixonado por uma estabilidade que é o estado em que as coisas morrem, deixam de ser.
Pra deixar claro: não estou sugerindo que uma comunidade online não seja uma comunidade, ela é! Mas as características do meio nos formam, e nossa capacidade de formar o meio é limitada pela abertura/fechamento que esse meio tem à nossa participação política, ou seja, à nossa capacidade de tomar decisões e participar do desenho desse meio. Eu gostaria de poder dizer que nós formamos as comunidades online na mesma medida em que elas nos formam, mas levando em conta a qualidade impenetrável das plataformas que são o solo dessas comunidades, somos muito mais formados por elas, somos muito mais sujeitados do que sujeitos-cidadãos (no sentido positivo que Milton Santos confere ao cidadão). A gente sente até no corpo o quanto somos formados pelas plataformas: nossas tendinites, problemas precoces de coluna e articulações, problemas de sono, ansiedade, estão sempre nos lembrando do tempo que precisamos passar online, produzindo dados pras plataformas, pra monetizar nossas existências precarizadas. Mas as plataformas não parecem sentir muitas dores, são muito indiferentes às nossas necessidades de gente que tem corpo e cansa, um pouco como seus donos: no quatro de julho o Mark Zuckerberg tava bem faceiro, num vídeo, surfando ridículo com uma bandeira dos Estados Unidos tremulando em alta velocidade! Aquela bandeira segurada por aquele cara (assim como o foguete lançado pelo Jeff Bezos, alguns dias mais tarde enquanto eu ainda escrevia este texto) representa as grandes empresas de tecnologia nos empalando sentados em cadeiras gamer. Eles ficam ricos, nós ficamos lesionados e traumatizados nesse lugar sem poder que é o de usuários de suas plataformas fechadas.
Vamos imaginar que cada comunidade online, por menor que seja - três pessoas, digamos - vai ter sempre uma quarta presença que é a do proprietário da plataforma (o Joãozinho, o Zézinho, a Mariazinha e o Jeff Bezos), e essa quarta presença vai ser tão ou mais determinante pra formação da comunidade do que qualquer um ali, mesmo que - ou até principalmente por isso - essa presença seja invisível, imperceptível na experiência cotidiana dos membros da comunidade. O ambiente, o solo da comunidade online, não é só a internet, mas a internet + a plataforma. A plataforma tem um funcionamento que nos incorpora, somos usuário ao mesmo tempo que peça da máquina. Mas somos peça intercambiável, e só interessamos à plataforma na medida em que servimos à sua operação principal, que é a extração de dados pra uso publicitário. Aquilo que ela produz numa dimensão mais visível pra nós: vídeos, áudios, interações… aquilo que chamamos de “conteúdo” ou “content” é esquema secundário pro modelo de negócios da plataforma, de forma que os produtos terão mais valor pela quantidade de dados que fazem circular do que por qualquer outra característica mais difícil de quantificar. Por isso eu costumo brincar que não existe nada mais sem conteúdo do que a criação de conteúdo. Não porque não tenha algum tipo de conteúdo, por superficial que seja, mas porque não vem daí sua utilidade.
Uma coisa importante: estar ou não estar no online não é uma questão de livre escolha, uma decisão tomada a partir de um julgamento moral de um indivíduo diante de opções abundantes. Quando nos colocamos na relação de despoder que é estar nessas plataformas que não nos pertencem nem nos respeitam, mesmo assim, estar nelas pode ser muito melhor do que estar nas nossas cidades, que podem ser mil vezes mais fechadas e violentas do que a pior das redes sociais. Mas as cidades não precisam ser assim.
Vilém Flusser⁶ vai introduzir o conceito de caixa preta. Ele fala que, desde a máquina fotográfica, os objetos técnicos passam a ocultar o seu funcionamento do usuário médio, de forma que ele só consegue ver o input e o output. E que seria desejável, então, uma abertura dessas caixas.
Mas a abertura da caixa preta deve coincidir com uma abertura das cidades, o que em grande parte significa abolir as catracas e as polícias. Internet aberta sem cidade aberta é apenas uma abertura parcial, não resolve o problema. Sem o passe livre, por exemplo, a mobilidade urbana segue racista e contra o pobre, porque o usuário do online não pode circular pelo offline, a cidade com catracas é um esquema pay to win. A cidade policial não garante que os negros e pobres voltem pra casa depois de ir e vir, fazendo com que circular pela cidade pra qualquer fim que não seja estritamente necessário se torne um risco que ninguém quer correr. A falta de uma circulação offline aberta vai afetar também a mobilidade online, e vice-versa. Por isso a gente não pode viver na cidade e pensar em projetos de vida comunitária totalmente apartados da cidade: mesmo que nossos projetos não contemplem essa relação online-offline, ela ocorre de modo invisível (oculta pela caixa preta) acompanhando a tendência hegemônica, concentrando os fluxos de capital sempre nos mesmos canais. Não é porque a gente não vê uma máquina que ela não está lá, tocando suas operações e nos sujeitando a seu funcionamento.
A gente não deve perder de vista o poder algorítmico das plataformas. Que é um poder tirânico não por ser algorítmico, mas por ser opaco, por ser fechado à nossa participação política. A gente só sabe que esse cálculo está a serviço de um uso publicitário, que por sua vez está a serviço do capitalismo globalizado. Os liberais tentam nos enganar dizendo que o trabalho de plataformas, que vai do uber e entregador de aplicativo ao streamer, é uma espécie de empreendedorismo. Mentira, é muito mais um tipo de mineração. Somos devastados do mesmo modo que um rio sofrendo o garimpo.
Mesmo assim, as cidades tem uma porosidade maior do que as plataformas online, pelo menos considerando a forma como elas são hoje, e eu acho que o videogame, especialmente, aproveita essa porosidade da cidade muito menos do que poderia. E aí eu vou aproveitar uma diferenciação que o Milton Santos faz entre cultura de massa e cultura popular. Ele diz o seguinte:
As classes médias amolecidas deixam absorver-se pela cultura de massa e dela retiram argumento para racionalizar sua existência empobrecida. Os carentes, sobretudo os mais pobres, estão isentos dessa absorção, mesmo porque não dispõem dos recursos para adquirir aquelas coisas que transmitem e asseguram essa cultura de massa. É por isso que as cidades, crescentemente inigualitárias, tendem a abrigar, ao mesmo tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem num jogo dialético sem fim.
A cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação. A cultura popular tem raízes na terra onde se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, por meio da mudança [lembram do Simondon?]. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo.⁷
Milton Santos não é contra a globalização, mas é contra a globalização capitalista e apologista de uma outra globalização, inclusive esse é o título do seu livro mais famoso⁸. Em termos zapatistas, essa outra globalização seria “um mundo em que caibam muitos mundos”. Mais do que um futuro com diversas identidades, essa utopia procura um futuro com diversos modos de vida, em que o local tem a ver com o global mas não há predação de um pelo outro.
Resumindo mas não fechando a minha proposta pro videogame, pra uma cultura de videogame não-fascista, não apaixonada pela estabilidade mortal das coisas que deixam de ser, eu diria que ela envolve algum tipo de encontro sincrético entre coisas, gentes e lugares que já existem na cidade, que de alguma forma são resistentes e tentam atualizar seu potencial contra a predação capitalista. A utopia aqui é a seguinte: videogame como cultura popular, videogame como cultura de rua, videogame como cultura de resistência, videogame como cultura antifascista, passe livre pra que nenhuma catraca se coloque entre a gente e o videogame da cidade. Abolir a polícia também ajudaria bastante. Tudo isso pra que não seja possível falar de videogame sem falar de tudo isso.
¹ HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
² https://menosplaystation.blogspot.com/2018/10/community-versus-comunidade.html
³ SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.
⁴ TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. n-1 edições, 2019.
⁵ SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
⁶ FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011.
⁷ SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.
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