quinta-feira, 2 de setembro de 2021

FASCISMO GAMER: O uso político do homem doméstico pelo trumpismo-bolsonarismo

Steve Bannon, dez anos antes de ingressar na campanha de Donald Trump pela presidência dos Estados Unidos, estava saindo de sua carreira em Hollywood¹ para participar do mercado de microtransações em World of Warcraft através da empresa de gold farming² Internet Gaming Entertainment (GREEN, 2017), sediada em Hong Kong mas atuante no cenário global do jogo mundialmente popular. A prática de microtransações - ou seja: a troca de recursos e vantagens ingame por dinheiro de verdade - não é uma novidade no videogame. Ainda nos anos 70, esse tipo de mercado ocorria em RPGs online como Oubliette, que rodavam nas redes de computadores universitárias anteriores à internet moderna (WILLIAMS, 2017, p. 65). As redes eram restritas a grupos com alguma formação técnica que justificasse seu acesso, de modo que as microtransações eram uma prática secundária numa cultura bastante restrita. A novidade que a Internet Gaming Entertainment instaura nos anos 2000 é a presença de uma prática extrativista de escala industrial (GREEN, 2017) em uma internet muito mais acessível, “democratizada” em certo sentido, e uma cultura de MMOs (Massive Multiplayer Online) cada vez mais próxima de uma cultura de massas mainstream, bem distante do interesse nerd obscuro de outrora. Essa diferença de escala e abrangência torna a operação empresarial muito mais lucrativa e também mais influente em um quadro cultural geral.

Mas o modelo de negócio da IGE precisou lidar frontalmente com os jogadores não-profissionais: a IGE empregava centenas de trabalhadores por baixos salários para farmar os personagens, o que gerou protestos online dos gamers revoltados, incluindo manifestações anti-chinesas de fundo xenófobo e racista, e até um processo contra a empresa sob a alegação de desequilibrar “a fruição coletiva do jogo” (GREEN, 2017). A própria Blizzard adotou uma política para excluir constantemente as contas de usuários ligados à prática de gold farming (GREEN, 2017), assumindo uma postura de lealdade para com seus jogadores não-profissionais. Tudo isso forçou a Internet Gaming Entertainment a um rebranding e reformulação de seu modelo, enquanto os estúdios de jogos passaram a assumir as microtransações como parte de suas atividades (GREEN, 2017), eliminando aos poucos a natureza subterrânea desse mercado. Bannon sai da empresa nesse momento, tendo aprendido lições importantes sobre os gamers. Explico: as atividades da empresa perturbavam o funcionamento normal do jogo, garantindo a infiltração de problemas reais. Não qualquer problema, mas os mesmos problemas que faziam do videogame um refúgio. Problemas do capitalismo. A venda de itens que, no universo do jogo só poderiam ser conquistados por mérito, passam a ser comercializados com dinheiro real - há uma quebra não só do que Huizinga chamaria de círculo mágico (a sustentação de uma espécie de crença na verdade do jogo, desde que todas as partes considerem que as regras são justas e estão sendo respeitadas) (HUIZINGA, 2012) como também o jogo perde a função de servir como um refúgio dos sofrimentos e injustiças do capitalismo e do mundo do trabalho lá fora. Esse processo de mercantilização do jogo é sentido pelos jogadores como uma força além de seu poder de decisão, uma vez que há no jogo digital um fechamento técnico que restringe a participação inventiva dos usuários. Assim como na vida real, a injustiça oriunda do abuso de poder econômico e a impossibilidade de participação política se transforma em revolta popular, luta de classes dos usuários contra as empresas e sua gestão do poder. Os gamers, no entanto, não percebem que estão se revoltando contra o capitalismo, contra a penetração da razão capitalista no mundo do jogo, e imaginam que se trata de um episódio sem conexão com o mundo lá fora.

Bannon aproveitou a despolitização gamer para dar a ela um conteúdo que beneficiasse o seu modo de vida burguês e não oferecesse qualquer risco a seu projeto de sociedade neo-reacionário. Em 2012 Bannon assume a presidência do Breitbart News, substituindo o antigo dono, seu aliado e velho conhecido da época hollywoodiana, Andrew Breitbart, que havia morrido (GREEN, 2017). Bannon dá continuidade ao legado de extrema direita do tabloide, inaugurado como um esforço de propaganda pró-Israel (SOLOV, 2021), e começa a aplicar o que aprendeu em Hong Kong sobre os gamers em 2015, contratando o agitador antifeminista Milo Yiannopoulos como colunista de tecnologia (GREEN, 2017) para conquistar o engajamento dessa demografia. Em 2014 se inicia a campanha online Gamergate, que seus apologistas classificam como uma revolta contra a “falta de ética no jornalismo de games”, movida por uma ampla aliança midiática entre os chamados chans, redes sociais mais conhecidas como Twitter e Facebook, canais do Youtube, tabloides como o Breitbart (que contava com a coluna de Yiannopoulos no momento), entre outros atores que disputavam a politização do gamer numa direção direitista e extremamente reacionária. A campanha parte de alegações de que a desenvolvedora de jogos independente Zoë Quinn teria trocado favores sexuais por cobertura midiática de seus jogos (GOULART; NARDI, 2017, p. 255) - que, vale observar: eram pouco convencionais, baseados em texto e não em gráficos, não se adequando ao gosto médio dos gamers. Capitalizando sobre o fato de que os gamers, em geral, seriam incapazes de considerar aspectos sistêmicos de qualquer crise, essa conjunção de atores desenvolveu o gamergate como uma conspiração antifeminista e tipicamente fascista: as mulheres estariam invadindo o “último refúgio masculino”, os videogames, para estragar a diversão. Elas traziam consigo a corrupção desse santuário masculino. A natureza pouco convencional de Depression Quest, seu jogo mais famoso, fortalece o discurso da corrupção e combina com a crítica de arte reacionária feita por youtubers e perfis leigos, sempre em defesa do retorno anacrônico de valores superados pela própria história da arte. Com o engajamento gamer, o Breitbart News salta de uma fonte de informações desprezível no ambiente midiático para um dos protagonistas nas conversas de rede social. O veículo se mantém relevante alimentando e criando polêmicas de cunho antifeminista e reacionário, que geram um grande volume de interações raivosas, em aliança com influenciadores e usuários de diferentes tamanhos e alcance. A participação dos que repudiam tais conteúdos auxilia na manutenção de sua visibilidade, deixando poucas alternativas de resistência no campo online. Nas palavras de Bannon, seu objetivo em relação aos gamers seria “ativar esse exército” que viria pelo Gamergate e ficaria pela política de extrema direita e por Trump (GREEN, 2017).

Em 2018 Steve Bannon presta consultoria a Bolsonaro em sua campanha (PIRES, 2021), tendo como um dos efeitos dessa colaboração uma mudança no discurso bolsonarista sobre games, que vai do tradicional pânico moral conservador (“É um crime, videogame. Você tem de coibir o máximo possível, a criança não aprende nada.” [ISTOÉ, 2021]) aos acenos amistosos e promessas. Em 29 de julho de 2019, Bolsonaro viraliza ao telefonar para o atleta de e-sports Gabriel “FalleN”, prometendo reforma na tributação dos games (ARAÚJO, 2021). No mês seguinte, Bolsonaro publica um vídeo no Twitter em que joga um game de tiro e escreve “forte abraço, gamers!”. Em agosto de 2020, o filho mais novo de Bolsonaro, jogador de League of Legends (uma das principais marcas de e-sports), participa de reunião não-agendada com o então secretário de cultura Mario Frias para falar sobre “o futuro dos e-sports” (CARVALHO, 2021). A estratégia de aproximação dá frutos e, conforme demonstra matéria da Valor (AGOSTINE, 2021), os gamers passam a compor o núcleo duro de apoiadores de Bolsonaro em 2020, junto a militares e religiosos.

Figura 1: Flyer divulgando os modelos cocktail table de gabinetes da PMC Electronics.

A razão desse caráter despolitizado do gamer, tão bem aproveitado pelos fascistas, pode ser explicado, em parte, pela passagem do videogame como oportunidade de diversão pública e coletiva para o videogame como hábito de consumo privado e individual, mudança que se observa na narrativa publicitária. Podemos observar também uma mudança nos jogadores ideais, retratados inicialmente como juventude boêmia nos fliperamas (Figura 1) e famílias nos consoles domésticos e microcomputadores, posteriormente sendo reduzidos aos meninos e homens jovens cisgêneros heterossexuais (GOULART; NARDI, 2017, p. 253). Uma peça chave dessa mudança ocorre na popularização dos microcomputadores nos anos 1980, fenômeno especialmente importante na Europa e nos Estados Unidos, mas que afeta a formação das identidades nerd e gamer também no Brasil sob efeito de uma cultura de massa globalizada. Buscando superar o esgotamento do mercado de games da primeira metade da década de 80, o chamado crash de 83 (GOULART; NARDI, 2017, p. 253), determinante na experiência do videogame estadunidense, ou simplesmente tentando evitar que o fenômeno se repita em terras europeias, os microcomputadores se vendem como um investimento na formação técnica, intelectual, profissional e até mesmo moral dos jovens, buscando conquistar os bolsos dos pais e mães preocupados com o destino de seus filhos (Figura 2) e pouco inclinados a adquirir outro brinquedo eletrônico caro. Vale observar que nos anos 80 os fliperamas ainda eram muito fortes - considera-se esse período como a era de ouro dos arcades (WILLIAMS, 2017, p. 71) - e a sombra de um estilo de vida boêmio, o fantasma dos vícios, excessos e perigos de uma vida indisciplinada na cidade, ainda marcava o videogame. Ou seja: um elemento formativo da identidade gamer é a diferenciação entre o jogador doméstico - diversão sadia do estudante aplicado e protegido no seio da família nuclear - e o jogador do arcade - perda de tempo, vadiagem e exposição aos riscos da vida na cidade. No Brasil essa variação boêmia pode ser reconhecida em termos como “fliperama de boteco” e “fliperama de rodoviária”, que descrevem a experiência brasileira dos arcades. Naturalmente o tipo doméstico irá se adaptar melhor aos homens, brancos e outros marcadores que são, por norma, associados a ideias de segurança, estabilidade etc. As ideologias de direita como supremacismo branco, masculinismo, otimismo tecnocrático, entre outras, acabam sendo um complemento lógico ao jogador doméstico. As mulheres estão entre as primeiras excluídas da identidade gamer pois a tendência hegemônica é que experimentem o contexto doméstico como um ambiente de trabalho reprodutivo e não de preparo para um futuro em que serão dominantes. O homem doméstico - o nerd - não herda da mulher as responsabilidades do lar, apenas perde do homem sua potência pública.

Figura 2: Propaganda do microcomputador Tandy TRS-80.

A promessa de um futuro glorioso a esse novo tipo de homem doméstico, concretamente a serviço da formação de trabalhadores intelectuais que se tornam cada vez mais necessários no quadro de um capitalismo informatizado, se coloca ideologicamente como garantia de mobilidade social meteórica: o nerd de hoje seria, na promessa capitalista, o magnata da tecnologia amanhã. O consumo de computadores e novas mídias relacionadas é, ao mesmo tempo, o bilhete para esse futuro burguês altamente tecnológico e a ruptura com uma identificação ou consciência de classe entre os de baixo. A frustração desse futuro deixa nas mãos do nerd apenas o consumismo de artigos high tech sobre o qual ele investiu toda sua vida, e o ressentimento contra corpos invasores (mulheres, pessoas não-brancas, LGBTQIA+ etc.) que nunca compraram a promessa com tanta entrega pois sabiam que ela não lhes era destinada.

¹ Primeiro como banqueiro na Goldman Sachs, explorando a lucratividade do império cinematográfico hollywoodiano, em seguida como roteirista, diretor e produtor de filmes como In The Face of Evil - um elogio do anticomunismo de Reagan que Bannon recuperou para estabelecer um paralelismo com o que ele julgava ser a ameaça anti-ocidente do islamismo radical após 11 de setembro - e Border Wars: The Battle Over Illegal Immigration, entre outros títulos paranoicos típicos dos temas conspiracionistas de extrema direita que hoje reconhecemos nos discursos trumpista e bolsonarista. (GREEN, 2017)

² 
Executar ações dentro do jogo que resultem no ganho de itens valiosos na economia interna do jogo. (FALCÃO; MARQUES; MUSSA, 2020 p. 13)

REFERÊNCIAS POR ORDEM DE APARIÇÃO

GREEN, Joshua. Devil's Bargain. New York: Penguin Press, 2017.

WILLIAMS, Andrew. History of Digital Games: Developments in Art, Design and Interaction. Nova Iorque, CRC Press, 2017.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012.

SOLOV, Larry. Breitbart News Network: Born in the USA, conceived in Israel. Breitbart News, 17 nov. 2015. Disponível em: https://www.breitbart.com/the-media/2015/11/17/breitbart-news-network-born-in-the-usa-conceived-in-israel/. Acesso em: 5 jul. 2021.

GOULART, Lucas; NARDI, Henrique Caetano. O Circuito da Diversão ou Da Ludologia à Ideologia: Diversão Escapismo e Exclusão na Cultura de Jogo Digital. Dossiê comunicação, mídia, videogames. Logos: Comunicação e Universidade, Rio de Janeiro, vol. 26, n. 2, p. 72-85, 2019.

PIRES, Breiller. Os laços do clã Bolsonaro com Steve Bannon. El País, São Paulo: 20 ago. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-20/os-lacos-do-cla-bolsonaro-com-steve-bannon.html. Acesso em: 7 jul. 2021.

Bolsonaro nem sempre foi fã de games. ISTOÉ, 16 ago. 2019. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-nem-sempre-foi-fa-de-games/amp/. Acesso em: 7 jul. 2021.

ARAÚJO, Henrique. Como o mundo dos games virou arma nas mãos de Bolsonaro. O Povo, 13 mai. 2021. Disponível em: https://mais.opovo.com.br/reportagens-especiais/bolsonaro-e-o-mundo-do-game/2021/05/13/como-o-mundo-dos-games-virou-arma-nas-maos-de-bolsonaro.html. Acesso em: 7 jul. 2021.

CARVALHO, Daniel. Mario Frias recebe filho de Bolsonaro para reunião sobre esportes eletrônicos. Folha de S.Paulo, 31 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/mario-frias-recebe-filho-de-bolsonaro-para-reuniao-sobre-esportes-eletronicos.shtml. Acesso em: 7 jul. 2021.

AGOSTINE, Cristiane. Núcleo duro de Bolsonaro é iniciante na política. Valor Econômico, São Paulo, 3 out. 2018. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/10/03/nucleo-duro-de-bolsonaro-e-iniciante-na-politica.ghtml. Acesso em: 7 jul. 2021.

FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan. BOYCOTTBLIZZARD: capitalismo de plataforma e a colonização do jogo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. XX-YY, abr./jul. 2020.

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