Desde que li o texto da Felícia Guerreiro sobre arte e videogame, tenho pensado bastante sobre o tema. Frequentemente converso também com a Bruna Dias, minha sócia de Pirata de Prata, que discorda das minhas afirmações (que sinto cada vez mais fracas) sobre a completa inutilidade da arte pro videogame. O tijolinho que faltava na minha vidraça foi o texto do Vinícius Machado sobre o jogo da Nathalie Lawhead, o Everything is going to be OK. Recomendo começar pelos textos da Felícia e do Vinícius antes de voltar pra cá - ou começar aqui e terminar com eles, você decide!
DE BAIXO PARA CIMA, COMO OS ANARQUISTAS
Bertie the Brain, IA de 1950 que ganha de você no jogo da velha. |
Minha compreensão de arte até então tem se limitado ao seguinte: a arte é o campo profissional da atividade humana liberada, mas novamente domesticada. Por isso artistas podem ser loucos, gays, travestis, deprimidos, drogados, mulheres promíscuas... toda a forma ou situação de existência que foge à norma, que não serve à eficiência, só tem lugar aceitável na arte. As sexualidades que não servem a um propósito reprodutivo ou de manutenção da hierarquia, as condições psicológicas que não servem ao trabalho incansável, o consumo de artigos que são um pouco mais do que a satisfação das necessidades básicas do trabalhador, o uso do tempo de forma indisciplinada... tudo isso é aceito com condescendência na cultura capitalista, desde que expresso na figura do artista.
Na cultura da comunicação de massa, e hoje na hiperconectividade, a gente observa a busca da liberdade em viver uma vida de artista na busca da fama - já descolada de qualquer "atividade artística". As pessoas não querem ser famosas, elas querem ser livres. O capitalismo diz a elas que precisam ser famosas, porque apenas os artistas podem ser livres. (Isso torna as pessoas mais dispostas a produzir conteúdo pra empresas gigantes como o Youtube sem receber nada em troca, por exemplo.)
Tennis for Two, multiplayer de 1958 |
Até então eu concluía: sendo a arte esse campo, ela só pode existir no capitalismo. Se imaginar artista é se imaginar numa conquista individual da liberdade, uma noção burguesa. A arte não existe senão como ilusão, uma que nos distrai da origem capitalista dos problemas. Mas porra... e daí? Do ponto de vista prático isso não nos dá nenhuma ferramenta, né? A arte continua existindo como campo e como conceito - mesmo que como conceito não comunique bem, já que se trata de uma mistura eclética, contraditória e anacrônica de vários significados; um conceito ineficiente, assim como as existências que o campo abriga.
E se estivermos pensando no problema da arte de forma totalmente capturada pelo capitalismo, colonizada? Talvez as coisas não precisem ser ou não ser arte, não precisem se submeter a um conceito central que define o que está dentro e o que está fora, o que é artístico e o que não é. Talvez as coisas possuam arte, a arte sendo um conceito que se submete ao contexto das linguagens, por isso tão disforme e inútil quando discutido em abstrato. Ao invés de perguntarmos se o videogame é arte, se o cinema é arte ou se quadrinhos são arte, podemos perguntar: o que é a arte do cinema, o que é a arte dos quadrinhos, o que é a arte do videogame? Como determinadas atividades conseguem criar oportunidades de liberação relativa dos seres humanos? Onde está localizado o potencial de ruptura com o capitalismo dentro de cada ramo da atividade humana?
Com isso conseguimos ser mais práticos: entender a arte de cada coisa é entender a lógica anticapitalista de cada trabalho para excitar a sua liberação. Isso que fazemos e que atrapalha a eficiência é o que precisamos fazer para viver com nossa humanidade.
VIDEOGAME NÃO É CINEMA
Prince of Persia usava rotoscopia e parecia uma aventura do Indiana Jones. |
Os jogos são considerados "obras-primas" não quando se aproximam de uma exploração muito imaginativa da linguagem do videogame, mas quando minimamente se parecem com o cinema. Por isso a supervalorização de coisas como Hideo Kojima e Heavy Rain: narrativas gráficas que poderiam ser filmes do Super Cine, aventuras divertidas e banais, mas que são celebradas como geniais porque são videogames que não parecem videogames. Isso não significa que "jogos que parecem filmes" não estejam também ampliando a linguagem, isso já aconteceu inúmeras vezes com títulos como o original Prince of Persia de Jordan Mechner ou Phantasmagoria, e toda a obsessão pelo 3D na geração Playstation, mas "parecer cinema" não é bem a qualidade que permanece atrelada a esses jogos com a passagem do tempo. Nem sempre os jogos ampliam a linguagem pelo motivo que acham que estão ampliando.
THIS GAME CONTAINS SCENES OF EXPLICIT VIOLENCE AND GORE
Hoje estamos presenciando o resgate do lowpoly como escolha estética e não só como um atalho técnico pra atingir resultados mínimos. Títulos do terror e suspense independente como Paratopic, OK/NORMAL, Giraffe Town e os jogos do prolífico Puppet Combo... por que nos emocionam tanto hoje e por que tantos autores estão convergindo nessa estética? E por que são logo os autores de terror os mais interessados nesse uso do lowpoly?
https://community.clickteam.com/threads/99822-PSx-shader-for-firefly |
Esse colega usuário de Clickteam não entende por que as pessoas podem gostar tanto de filtros que fazem com que as texturas pareçam bugar como no Playstation. Existe um apelo nostálgico, mas eu acho que há uma razão mais profunda, e eu arrisco dizer que o lowpoly playstationista veio pra ficar como a pixel art. A pixel art nunca esteve tão viva. Escolas estéticas não operam por substituição quando a sua motivação é artística - o que significa dizer: desinteressada pela eficiência. Claro que com os casos de sucesso as tendências de mercado se formam, mas a razão de serem jogos tão especiais não está aí. Acontece que o independente finalmente conquistou a técnica e a estética do 3D, compreendeu o 3D não na semelhança com o cinema, mas na diferença. A diferença entre os dois é a falha simulacional.
Ape Escape é todo torto. |
Não estamos mais falando do autor semiprofissional que escolheu o 3D pra produzir um visual de ponta, mas do autor que percebeu o quão longe do cinema está o videogame 3D. Coisa que fizemos quase instantaneamente com os Full Motion Videos, mas o independente não era tão forte pra que essa percepção se convertesse numa escola.
O terror e o suspense nos contam histórias sobre situações disfuncionais, de realidades e personalidades quebradas: pessoas que perdem o controle, que se transformam em monstros, insetos ou assassinos, de mundos feios que existem no subsolo ou dentro das paredes ou de fantasmas transparentes que estão no meio do caminho entre dois mundos, de coisas muito ruins que vão acontecer não se sabe como nem exatamente quando, de pessoas esquartejadas que não podem mais sair andando por aí eficientemente - ou que andam por aí mesmo que estejam esquartejadas e reduzidas à busca da satisfação de sua fome. Por isso o terror é mais capaz de entender qual é o apelo do maldito filtro que buga as texturas como no Playsation.
A ARTE DO VIDEOGAME
Os videogames nascem de três ambições primordiais, todas relacionadas à simulação: a inteligência artificial que simula um oponente humano; as leis da física ou regras de um esporte real reconstruídas num ambiente virtual; a participação do usuário numa narrativa ficcional. Isso significa que a arte do videogame é a arte da simulação? Não, porque uma simulação simples nem sempre é videogame. Quando a simulação surge na tela dos computadores, surge também outra coisa com ela: a presença visível da sua qualidade de diferente. A conquista da tela é a conquista da percepção da debilidade da simulação. Quando simulações se expressam em números, não podemos vê-las de modo sensível, nos comunicamos com os resultados do cálculo simulacional de uma forma que não é estética, que é eficiência pura. A arte do videogame se trata, portanto, de utilizar falhas simulacionais em benefício de uma ficção.
Se você quiser ler os textos mais antigos que eu escrevi sobre o tema, eles ainda tem coisas que não foram totalmente superadas pelas atualizações de hoje:
Implosão Indie: Uma Cadeira é Um Videogame (por John Sweeney), tradução comentada de texto reacionário;
Se você quiser ler os textos mais antigos que eu escrevi sobre o tema, eles ainda tem coisas que não foram totalmente superadas pelas atualizações de hoje:
Implosão Indie: Uma Cadeira é Um Videogame (por John Sweeney), tradução comentada de texto reacionário;
Sistim e o Controle dos Quadris, sobre realidade virtual;
O Videogame Contra a Arte, continua tendo algumas ideias relevantes mesmo com o título que parece contradizer completamente o texto de hoje;
Videogame, Arte e Acidentes de Trem, falo sobre as qualidades do bug;
Entrevista com Natália de Moraes, aqui eu acho ainda importante a definição da arte contemporânea burguesa como uma subcultura extrema que não merece o lugar que ocupa;
Crime e Infração: a Performance Além do Fato, ou "como os aspectos simulacionais do videogame podem ser libertadores quando o Datena não está no caminho".
O Videogame Contra a Arte, continua tendo algumas ideias relevantes mesmo com o título que parece contradizer completamente o texto de hoje;
Videogame, Arte e Acidentes de Trem, falo sobre as qualidades do bug;
Entrevista com Natália de Moraes, aqui eu acho ainda importante a definição da arte contemporânea burguesa como uma subcultura extrema que não merece o lugar que ocupa;
Crime e Infração: a Performance Além do Fato, ou "como os aspectos simulacionais do videogame podem ser libertadores quando o Datena não está no caminho".
muito interessante a reflexão! buguei meu cérebro lendo hehe! XD
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