Para que a revolução social possa realizar-se, é necessário que o espírito popular encontre novas formas de organização societária.
BIBLIOGRAFIA
Siglas como RABM (Red & Anarchist Black Metal) e RASH (Red & Anarchist Skinheads) servem de inspiração pro RAIV. Assim como nesses dois casos, o videogame sofreu uma forte penetração fascista a ponto de transformar reacionarismo e videogame quase em sinônimos no imaginário coletivo, fato conhecido e utilizado por líderes de extrema direita como Trump e Bolsonaro. O RAIV serve para denunciar e expulsar essa presença e apelar para a necessidade de um programa de esquerda para o videogame, que responda aos problemas complexos do capitalismo com igual complexidade, sem deixar que a farsa nazifascista siga conquistando aqueles que recusam o neoliberalismo nas suas manifestações progressistas.
Hoje vamos falar sobre comunidades e videogame. Pra começar, vou pegar emprestada uma definição de Yuk Hui. Ele diz o seguinte:
Uma comunidade humana é muito mais do que a soma dos agentes humanos que a constituem; ela também inclui o ambiente e outros seres não humanos.¹
Sem deixar de celebrar as comunidades online, quero fazer um convite pra pensarmos as suas insuficiências, e como essas insuficiências se relacionam com as proibições das cidades capitalistas, que lhe são anteriores. Mas antes eu vou fazer um relato, sobre como eu tenho percebido o videogame independente, que é onde eu componho comunidade.
Assim como no streaming, o desenvolvimento independente tem uma espécie de cena, de atores, podemos chamar essa cena de comunidade. Mas essa comunidade do indie hegemônico nunca me convenceu, e parecia que quando falávamos de comunidade, estávamos falando de coisas diferentes. Tem um post no meu blog, chamado Comunidade VS Community², que fala o seguinte:
Fazer o community building, no jargão empreendedor, significa garantir atenção pros seus jogos, estabelecer dominância num mercado de gente desesperada por um pouco da atenção que você acumula. É uma economia do puxa-saquismo, mesmo. A comunidade quer o seu lugar e você não quer cair para a comunidade.
Uma perspectiva de esquerda não está preocupada com o mercado, mas com a sobrevivência das pessoas. Se essa sobrevivência passa pelo mercado e esse mercado não é sustentável, não é acessível para todos, então há um problema de estrutura. O liberal vai propor que é só uma questão de técnica, de compreensão das tendências e de talento em community building (que não mexe na estrutura, apenas abusa de uma estrutura já disfuncional). Em outras palavras: o liberal vai dizer que a miséria produzida pela estrutura é culpa individual daquele que não é talentoso em operar esse abuso. [Então ele acaba justificando a exclusão.]
A tarefa criativa da esquerda no videogame independente seria propor esses outros jeitos de sobreviver, de se organizar em comunidade.
Antes de continuar, só pra dar uma definição de esquerda e direita, que não tem diretamente a ver com partidos e candidatos. A definição é um pouco grosseira e super abrangente, mas vai ter que servir pra hoje. Pra direita, a sociedade é um acessório do mercado. Pra esquerda, o mercado é um acessório da sociedade. No capitalismo, as únicas coisas das quais não se abre mão, ou seja, não se mata nem se deixa morrer, são aquelas que tem valor no mercado. E algumas coisas são lucrativas como imagem mas descartáveis quando vivas, o que deixa tudo mais confuso.
Outra coisa que me incomodava no indie liberal era a construção de uma cena que não fazia contato com os jogadores locais, só com outros indies. Não faz sentido uma cultura local que ignora o local, focando num público-alvo que nem está presente, construindo a comunidade, e muitas vezes é um público gringo ideal, anglófono, gamer, usuário da Steam. A cena indie liberal, então, não rompe com o funcionamento das plataformas online, só as continua num ambiente offline que é controlado pelos mesmos atores que são fortes no mercado, ou seja, na Steam, nas redes sociais, em determinada plataforma que é fechada e pertence a algum bilionário gringo. Quando a comunidade não tem poder político, não tem como viver com liberdade no solo que pisa - o que é o caso das plataformas online - a comunidade se torna algo a evitar, um lugar onde não queremos cair, de modo que o sonho é estar acima dela, operando seu abuso, nos lugares de poder. Paulo Freire explica.
Essa falta de consciência sobre a não-naturalidade das redes online desenvolve, na gente, uma tendência a imitá-la fora dessas redes, o que significa fortalecê-las. Uma rede, de acordo com Milton Santos³, não é homogênea, porque ela é disposta sobre as irregularidades que já estavam instaladas. Por isso que o usuário da internet que é negro vai experimentar o mesmo racismo que já estava instalado na cidade, ou até intensificado, porque o offline e o online se confirmam, se validam reciprocamente e se reforçam. A tendência de uma rede, planejada como se fosse homogênea mas não sendo, é agudizar as injustiças já instaladas. A gente pode imaginar um lençol cobrindo uma cama cheia de cobras e lagartos: os volumes vão se formar, o lençol não vai eliminar as cobras e lagartos que estão debaixo. O Milton Santos vai explicar o poder hegemônico, do capitalismo global, a partir de verticalidades e horizontalidades: as verticalidades tentam colonizar tudo aquilo que sua rede pode percorrer, e as horizontalidades reagem ao poder vertical se conformando a ele ou escapando nas zonas cegas entre os pontos e linhas da rede, que tendem a ser cada vez menores. Nessas zonas cegas estão os que insistem na manutenção de modos de vida desajustados, não lucrativos. São as culturas de resistência, que teimam em não se deixar descartar necropoliticamente. O coletivo TIQQUN diz uma coisa muito interessante sobre as resistências, que é o seguinte: a unidade humana elementar não é o corpo - o indivíduo -, mas a forma-de-vida⁴. Isso significa que um indivíduo pode lidar de forma conformista com uma predação, e continuar vivo mesmo que tenha sido sacrificada uma forma-de-vida, talvez ele tendo sido o último dos seus.
Mas o se conformar ou não se conformar não é binário, sempre-sim e sempre-não, e as religiões afro-brasileiras sincréticas são um bom exemplo de como as culturas de resistência podem garantir que uma forma-de-vida continue mesmo sob predação, investindo no quase-sim ou quase-não. Como seria a forma sincrética de um videogame resistente, mais do que independente?
Gilbert Simondon⁵ diz que tudo aquilo que existe, ou seja, tudo aquilo que a gente pode reconhecer e dar nome, passa por um processo de individuação - se torna indivíduo. O indivíduo estaria permanentemente em formação, mantendo em si um potencial de se tornar outra coisa - a continuidade da existência da coisa é um processo de atualização de seus potenciais. Ser é preservar a possibilidade de vir a ser outra coisa. Não há energia na estabilidade total e completa, porque nesse estado o indivíduo se desagrega e deixa de ser. Por isso que o fascismo, no nosso caso o bolsonarismo, é tão apaixonado por morte: porque é apaixonado por uma estabilidade que é o estado em que as coisas morrem, deixam de ser.
Pra deixar claro: não estou sugerindo que uma comunidade online não seja uma comunidade, ela é! Mas as características do meio nos formam, e nossa capacidade de formar o meio é limitada pela abertura/fechamento que esse meio tem à nossa participação política, ou seja, à nossa capacidade de tomar decisões e participar do desenho desse meio. Eu gostaria de poder dizer que nós formamos as comunidades online na mesma medida em que elas nos formam, mas levando em conta a qualidade impenetrável das plataformas que são o solo dessas comunidades, somos muito mais formados por elas, somos muito mais sujeitados do que sujeitos-cidadãos (no sentido positivo que Milton Santos confere ao cidadão). A gente sente até no corpo o quanto somos formados pelas plataformas: nossas tendinites, problemas precoces de coluna e articulações, problemas de sono, ansiedade, estão sempre nos lembrando do tempo que precisamos passar online, produzindo dados pras plataformas, pra monetizar nossas existências precarizadas. Mas as plataformas não parecem sentir muitas dores, são muito indiferentes às nossas necessidades de gente que tem corpo e cansa, um pouco como seus donos: no quatro de julho o Mark Zuckerberg tava bem faceiro, num vídeo, surfando ridículo com uma bandeira dos Estados Unidos tremulando em alta velocidade! Aquela bandeira segurada por aquele cara (assim como o foguete lançado pelo Jeff Bezos, alguns dias mais tarde enquanto eu ainda escrevia este texto) representa as grandes empresas de tecnologia nos empalando sentados em cadeiras gamer. Eles ficam ricos, nós ficamos lesionados e traumatizados nesse lugar sem poder que é o de usuários de suas plataformas fechadas.
Vamos imaginar que cada comunidade online, por menor que seja - três pessoas, digamos - vai ter sempre uma quarta presença que é a do proprietário da plataforma (o Joãozinho, o Zézinho, a Mariazinha e o Jeff Bezos), e essa quarta presença vai ser tão ou mais determinante pra formação da comunidade do que qualquer um ali, mesmo que - ou até principalmente por isso - essa presença seja invisível, imperceptível na experiência cotidiana dos membros da comunidade. O ambiente, o solo da comunidade online, não é só a internet, mas a internet + a plataforma. A plataforma tem um funcionamento que nos incorpora, somos usuário ao mesmo tempo que peça da máquina. Mas somos peça intercambiável, e só interessamos à plataforma na medida em que servimos à sua operação principal, que é a extração de dados pra uso publicitário. Aquilo que ela produz numa dimensão mais visível pra nós: vídeos, áudios, interações… aquilo que chamamos de “conteúdo” ou “content” é esquema secundário pro modelo de negócios da plataforma, de forma que os produtos terão mais valor pela quantidade de dados que fazem circular do que por qualquer outra característica mais difícil de quantificar. Por isso eu costumo brincar que não existe nada mais sem conteúdo do que a criação de conteúdo. Não porque não tenha algum tipo de conteúdo, por superficial que seja, mas porque não vem daí sua utilidade.
Uma coisa importante: estar ou não estar no online não é uma questão de livre escolha, uma decisão tomada a partir de um julgamento moral de um indivíduo diante de opções abundantes. Quando nos colocamos na relação de despoder que é estar nessas plataformas que não nos pertencem nem nos respeitam, mesmo assim, estar nelas pode ser muito melhor do que estar nas nossas cidades, que podem ser mil vezes mais fechadas e violentas do que a pior das redes sociais. Mas as cidades não precisam ser assim.
Vilém Flusser⁶ vai introduzir o conceito de caixa preta. Ele fala que, desde a máquina fotográfica, os objetos técnicos passam a ocultar o seu funcionamento do usuário médio, de forma que ele só consegue ver o input e o output. E que seria desejável, então, uma abertura dessas caixas.
Mas a abertura da caixa preta deve coincidir com uma abertura das cidades, o que em grande parte significa abolir as catracas e as polícias. Internet aberta sem cidade aberta é apenas uma abertura parcial, não resolve o problema. Sem o passe livre, por exemplo, a mobilidade urbana segue racista e contra o pobre, porque o usuário do online não pode circular pelo offline, a cidade com catracas é um esquema pay to win. A cidade policial não garante que os negros e pobres voltem pra casa depois de ir e vir, fazendo com que circular pela cidade pra qualquer fim que não seja estritamente necessário se torne um risco que ninguém quer correr. A falta de uma circulação offline aberta vai afetar também a mobilidade online, e vice-versa. Por isso a gente não pode viver na cidade e pensar em projetos de vida comunitária totalmente apartados da cidade: mesmo que nossos projetos não contemplem essa relação online-offline, ela ocorre de modo invisível (oculta pela caixa preta) acompanhando a tendência hegemônica, concentrando os fluxos de capital sempre nos mesmos canais. Não é porque a gente não vê uma máquina que ela não está lá, tocando suas operações e nos sujeitando a seu funcionamento.
A gente não deve perder de vista o poder algorítmico das plataformas. Que é um poder tirânico não por ser algorítmico, mas por ser opaco, por ser fechado à nossa participação política. A gente só sabe que esse cálculo está a serviço de um uso publicitário, que por sua vez está a serviço do capitalismo globalizado. Os liberais tentam nos enganar dizendo que o trabalho de plataformas, que vai do uber e entregador de aplicativo ao streamer, é uma espécie de empreendedorismo. Mentira, é muito mais um tipo de mineração. Somos devastados do mesmo modo que um rio sofrendo o garimpo.
Mesmo assim, as cidades tem uma porosidade maior do que as plataformas online, pelo menos considerando a forma como elas são hoje, e eu acho que o videogame, especialmente, aproveita essa porosidade da cidade muito menos do que poderia. E aí eu vou aproveitar uma diferenciação que o Milton Santos faz entre cultura de massa e cultura popular. Ele diz o seguinte:
As classes médias amolecidas deixam absorver-se pela cultura de massa e dela retiram argumento para racionalizar sua existência empobrecida. Os carentes, sobretudo os mais pobres, estão isentos dessa absorção, mesmo porque não dispõem dos recursos para adquirir aquelas coisas que transmitem e asseguram essa cultura de massa. É por isso que as cidades, crescentemente inigualitárias, tendem a abrigar, ao mesmo tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem num jogo dialético sem fim.
A cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação. A cultura popular tem raízes na terra onde se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, por meio da mudança [lembram do Simondon?]. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo.⁷
Milton Santos não é contra a globalização, mas é contra a globalização capitalista e apologista de uma outra globalização, inclusive esse é o título do seu livro mais famoso⁸. Em termos zapatistas, essa outra globalização seria “um mundo em que caibam muitos mundos”. Mais do que um futuro com diversas identidades, essa utopia procura um futuro com diversos modos de vida, em que o local tem a ver com o global mas não há predação de um pelo outro.
Resumindo mas não fechando a minha proposta pro videogame, pra uma cultura de videogame não-fascista, não apaixonada pela estabilidade mortal das coisas que deixam de ser, eu diria que ela envolve algum tipo de encontro sincrético entre coisas, gentes e lugares que já existem na cidade, que de alguma forma são resistentes e tentam atualizar seu potencial contra a predação capitalista. A utopia aqui é a seguinte: videogame como cultura popular, videogame como cultura de rua, videogame como cultura de resistência, videogame como cultura antifascista, passe livre pra que nenhuma catraca se coloque entre a gente e o videogame da cidade. Abolir a polícia também ajudaria bastante. Tudo isso pra que não seja possível falar de videogame sem falar de tudo isso.
¹ HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
² https://menosplaystation.blogspot.com/2018/10/community-versus-comunidade.html
³ SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.
⁴ TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. n-1 edições, 2019.
⁵ SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
⁶ FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011.
⁷ SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Steve Bannon, dez anos antes de ingressar na campanha de Donald Trump pela presidência dos Estados Unidos, estava saindo de sua carreira em Hollywood¹ para participar do mercado de microtransações em World of Warcraft através da empresa de gold farming² Internet Gaming Entertainment (GREEN, 2017), sediada em Hong Kong mas atuante no cenário global do jogo mundialmente popular. A prática de microtransações - ou seja: a troca de recursos e vantagens ingame por dinheiro de verdade - não é uma novidade no videogame. Ainda nos anos 70, esse tipo de mercado ocorria em RPGs online como Oubliette, que rodavam nas redes de computadores universitárias anteriores à internet moderna (WILLIAMS, 2017, p. 65). As redes eram restritas a grupos com alguma formação técnica que justificasse seu acesso, de modo que as microtransações eram uma prática secundária numa cultura bastante restrita. A novidade que a Internet Gaming Entertainment instaura nos anos 2000 é a presença de uma prática extrativista de escala industrial (GREEN, 2017) em uma internet muito mais acessível, “democratizada” em certo sentido, e uma cultura de MMOs (Massive Multiplayer Online) cada vez mais próxima de uma cultura de massas mainstream, bem distante do interesse nerd obscuro de outrora. Essa diferença de escala e abrangência torna a operação empresarial muito mais lucrativa e também mais influente em um quadro cultural geral.
Mas o modelo de negócio da IGE precisou lidar frontalmente com os jogadores não-profissionais: a IGE empregava centenas de trabalhadores por baixos salários para farmar os personagens, o que gerou protestos online dos gamers revoltados, incluindo manifestações anti-chinesas de fundo xenófobo e racista, e até um processo contra a empresa sob a alegação de desequilibrar “a fruição coletiva do jogo” (GREEN, 2017). A própria Blizzard adotou uma política para excluir constantemente as contas de usuários ligados à prática de gold farming (GREEN, 2017), assumindo uma postura de lealdade para com seus jogadores não-profissionais. Tudo isso forçou a Internet Gaming Entertainment a um rebranding e reformulação de seu modelo, enquanto os estúdios de jogos passaram a assumir as microtransações como parte de suas atividades (GREEN, 2017), eliminando aos poucos a natureza subterrânea desse mercado. Bannon sai da empresa nesse momento, tendo aprendido lições importantes sobre os gamers. Explico: as atividades da empresa perturbavam o funcionamento normal do jogo, garantindo a infiltração de problemas reais. Não qualquer problema, mas os mesmos problemas que faziam do videogame um refúgio. Problemas do capitalismo. A venda de itens que, no universo do jogo só poderiam ser conquistados por mérito, passam a ser comercializados com dinheiro real - há uma quebra não só do que Huizinga chamaria de círculo mágico (a sustentação de uma espécie de crença na verdade do jogo, desde que todas as partes considerem que as regras são justas e estão sendo respeitadas) (HUIZINGA, 2012) como também o jogo perde a função de servir como um refúgio dos sofrimentos e injustiças do capitalismo e do mundo do trabalho lá fora. Esse processo de mercantilização do jogo é sentido pelos jogadores como uma força além de seu poder de decisão, uma vez que há no jogo digital um fechamento técnico que restringe a participação inventiva dos usuários. Assim como na vida real, a injustiça oriunda do abuso de poder econômico e a impossibilidade de participação política se transforma em revolta popular, luta de classes dos usuários contra as empresas e sua gestão do poder. Os gamers, no entanto, não percebem que estão se revoltando contra o capitalismo, contra a penetração da razão capitalista no mundo do jogo, e imaginam que se trata de um episódio sem conexão com o mundo lá fora.
Bannon aproveitou a despolitização gamer para dar a ela um conteúdo que beneficiasse o seu modo de vida burguês e não oferecesse qualquer risco a seu projeto de sociedade neo-reacionário. Em 2012 Bannon assume a presidência do Breitbart News, substituindo o antigo dono, seu aliado e velho conhecido da época hollywoodiana, Andrew Breitbart, que havia morrido (GREEN, 2017). Bannon dá continuidade ao legado de extrema direita do tabloide, inaugurado como um esforço de propaganda pró-Israel (SOLOV, 2021), e começa a aplicar o que aprendeu em Hong Kong sobre os gamers em 2015, contratando o agitador antifeminista Milo Yiannopoulos como colunista de tecnologia (GREEN, 2017) para conquistar o engajamento dessa demografia. Em 2014 se inicia a campanha online Gamergate, que seus apologistas classificam como uma revolta contra a “falta de ética no jornalismo de games”, movida por uma ampla aliança midiática entre os chamados chans, redes sociais mais conhecidas como Twitter e Facebook, canais do Youtube, tabloides como o Breitbart (que contava com a coluna de Yiannopoulos no momento), entre outros atores que disputavam a politização do gamer numa direção direitista e extremamente reacionária. A campanha parte de alegações de que a desenvolvedora de jogos independente Zoë Quinn teria trocado favores sexuais por cobertura midiática de seus jogos (GOULART; NARDI, 2017, p. 255) - que, vale observar: eram pouco convencionais, baseados em texto e não em gráficos, não se adequando ao gosto médio dos gamers. Capitalizando sobre o fato de que os gamers, em geral, seriam incapazes de considerar aspectos sistêmicos de qualquer crise, essa conjunção de atores desenvolveu o gamergate como uma conspiração antifeminista e tipicamente fascista: as mulheres estariam invadindo o “último refúgio masculino”, os videogames, para estragar a diversão. Elas traziam consigo a corrupção desse santuário masculino. A natureza pouco convencional de Depression Quest, seu jogo mais famoso, fortalece o discurso da corrupção e combina com a crítica de arte reacionária feita por youtubers e perfis leigos, sempre em defesa do retorno anacrônico de valores superados pela própria história da arte. Com o engajamento gamer, o Breitbart News salta de uma fonte de informações desprezível no ambiente midiático para um dos protagonistas nas conversas de rede social. O veículo se mantém relevante alimentando e criando polêmicas de cunho antifeminista e reacionário, que geram um grande volume de interações raivosas, em aliança com influenciadores e usuários de diferentes tamanhos e alcance. A participação dos que repudiam tais conteúdos auxilia na manutenção de sua visibilidade, deixando poucas alternativas de resistência no campo online. Nas palavras de Bannon, seu objetivo em relação aos gamers seria “ativar esse exército” que viria pelo Gamergate e ficaria pela política de extrema direita e por Trump (GREEN, 2017).
Em 2018 Steve Bannon presta consultoria a Bolsonaro em sua campanha (PIRES, 2021), tendo como um dos efeitos dessa colaboração uma mudança no discurso bolsonarista sobre games, que vai do tradicional pânico moral conservador (“É um crime, videogame. Você tem de coibir o máximo possível, a criança não aprende nada.” [ISTOÉ, 2021]) aos acenos amistosos e promessas. Em 29 de julho de 2019, Bolsonaro viraliza ao telefonar para o atleta de e-sports Gabriel “FalleN”, prometendo reforma na tributação dos games (ARAÚJO, 2021). No mês seguinte, Bolsonaro publica um vídeo no Twitter em que joga um game de tiro e escreve “forte abraço, gamers!”. Em agosto de 2020, o filho mais novo de Bolsonaro, jogador de League of Legends (uma das principais marcas de e-sports), participa de reunião não-agendada com o então secretário de cultura Mario Frias para falar sobre “o futuro dos e-sports” (CARVALHO, 2021). A estratégia de aproximação dá frutos e, conforme demonstra matéria da Valor (AGOSTINE, 2021), os gamers passam a compor o núcleo duro de apoiadores de Bolsonaro em 2020, junto a militares e religiosos.
Figura 1: Flyer divulgando os modelos cocktail table de gabinetes da PMC Electronics. |
A razão desse caráter despolitizado do gamer, tão bem aproveitado pelos fascistas, pode ser explicado, em parte, pela passagem do videogame como oportunidade de diversão pública e coletiva para o videogame como hábito de consumo privado e individual, mudança que se observa na narrativa publicitária. Podemos observar também uma mudança nos jogadores ideais, retratados inicialmente como juventude boêmia nos fliperamas (Figura 1) e famílias nos consoles domésticos e microcomputadores, posteriormente sendo reduzidos aos meninos e homens jovens cisgêneros heterossexuais (GOULART; NARDI, 2017, p. 253). Uma peça chave dessa mudança ocorre na popularização dos microcomputadores nos anos 1980, fenômeno especialmente importante na Europa e nos Estados Unidos, mas que afeta a formação das identidades nerd e gamer também no Brasil sob efeito de uma cultura de massa globalizada. Buscando superar o esgotamento do mercado de games da primeira metade da década de 80, o chamado crash de 83 (GOULART; NARDI, 2017, p. 253), determinante na experiência do videogame estadunidense, ou simplesmente tentando evitar que o fenômeno se repita em terras europeias, os microcomputadores se vendem como um investimento na formação técnica, intelectual, profissional e até mesmo moral dos jovens, buscando conquistar os bolsos dos pais e mães preocupados com o destino de seus filhos (Figura 2) e pouco inclinados a adquirir outro brinquedo eletrônico caro. Vale observar que nos anos 80 os fliperamas ainda eram muito fortes - considera-se esse período como a era de ouro dos arcades (WILLIAMS, 2017, p. 71) - e a sombra de um estilo de vida boêmio, o fantasma dos vícios, excessos e perigos de uma vida indisciplinada na cidade, ainda marcava o videogame. Ou seja: um elemento formativo da identidade gamer é a diferenciação entre o jogador doméstico - diversão sadia do estudante aplicado e protegido no seio da família nuclear - e o jogador do arcade - perda de tempo, vadiagem e exposição aos riscos da vida na cidade. No Brasil essa variação boêmia pode ser reconhecida em termos como “fliperama de boteco” e “fliperama de rodoviária”, que descrevem a experiência brasileira dos arcades. Naturalmente o tipo doméstico irá se adaptar melhor aos homens, brancos e outros marcadores que são, por norma, associados a ideias de segurança, estabilidade etc. As ideologias de direita como supremacismo branco, masculinismo, otimismo tecnocrático, entre outras, acabam sendo um complemento lógico ao jogador doméstico. As mulheres estão entre as primeiras excluídas da identidade gamer pois a tendência hegemônica é que experimentem o contexto doméstico como um ambiente de trabalho reprodutivo e não de preparo para um futuro em que serão dominantes. O homem doméstico - o nerd - não herda da mulher as responsabilidades do lar, apenas perde do homem sua potência pública.
Figura 2: Propaganda do microcomputador Tandy TRS-80. |
A promessa de um futuro glorioso a esse novo tipo de homem doméstico, concretamente a serviço da formação de trabalhadores intelectuais que se tornam cada vez mais necessários no quadro de um capitalismo informatizado, se coloca ideologicamente como garantia de mobilidade social meteórica: o nerd de hoje seria, na promessa capitalista, o magnata da tecnologia amanhã. O consumo de computadores e novas mídias relacionadas é, ao mesmo tempo, o bilhete para esse futuro burguês altamente tecnológico e a ruptura com uma identificação ou consciência de classe entre os de baixo. A frustração desse futuro deixa nas mãos do nerd apenas o consumismo de artigos high tech sobre o qual ele investiu toda sua vida, e o ressentimento contra corpos invasores (mulheres, pessoas não-brancas, LGBTQIA+ etc.) que nunca compraram a promessa com tanta entrega pois sabiam que ela não lhes era destinada.
¹ Primeiro como banqueiro na Goldman Sachs, explorando a lucratividade do império cinematográfico hollywoodiano, em seguida como roteirista, diretor e produtor de filmes como In The Face of Evil - um elogio do anticomunismo de Reagan que Bannon recuperou para estabelecer um paralelismo com o que ele julgava ser a ameaça anti-ocidente do islamismo radical após 11 de setembro - e Border Wars: The Battle Over Illegal Immigration, entre outros títulos paranoicos típicos dos temas conspiracionistas de extrema direita que hoje reconhecemos nos discursos trumpista e bolsonarista. (GREEN, 2017)
² Executar ações dentro do jogo que resultem no ganho de itens valiosos na economia interna do jogo. (FALCÃO; MARQUES; MUSSA, 2020 p. 13)
REFERÊNCIAS POR ORDEM DE APARIÇÃO
GREEN, Joshua. Devil's Bargain. New York: Penguin Press, 2017.
WILLIAMS, Andrew. History of Digital Games: Developments in Art, Design and Interaction. Nova Iorque, CRC Press, 2017.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012.
SOLOV, Larry. Breitbart News Network: Born in the USA, conceived in Israel. Breitbart News, 17 nov. 2015. Disponível em: https://www.breitbart.com/the-media/2015/11/17/breitbart-news-network-born-in-the-usa-conceived-in-israel/. Acesso em: 5 jul. 2021.
GOULART, Lucas; NARDI, Henrique Caetano. O Circuito da Diversão ou Da Ludologia à Ideologia: Diversão Escapismo e Exclusão na Cultura de Jogo Digital. Dossiê comunicação, mídia, videogames. Logos: Comunicação e Universidade, Rio de Janeiro, vol. 26, n. 2, p. 72-85, 2019.
PIRES, Breiller. Os laços do clã Bolsonaro com Steve Bannon. El País, São Paulo: 20 ago. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-20/os-lacos-do-cla-bolsonaro-com-steve-bannon.html. Acesso em: 7 jul. 2021.
Bolsonaro nem sempre foi fã de games. ISTOÉ, 16 ago. 2019. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-nem-sempre-foi-fa-de-games/amp/. Acesso em: 7 jul. 2021.
ARAÚJO, Henrique. Como o mundo dos games virou arma nas mãos de Bolsonaro. O Povo, 13 mai. 2021. Disponível em: https://mais.opovo.com.br/reportagens-especiais/bolsonaro-e-o-mundo-do-game/2021/05/13/como-o-mundo-dos-games-virou-arma-nas-maos-de-bolsonaro.html. Acesso em: 7 jul. 2021.
CARVALHO, Daniel. Mario Frias recebe filho de Bolsonaro para reunião sobre esportes eletrônicos. Folha de S.Paulo, 31 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/mario-frias-recebe-filho-de-bolsonaro-para-reuniao-sobre-esportes-eletronicos.shtml. Acesso em: 7 jul. 2021.
AGOSTINE, Cristiane. Núcleo duro de Bolsonaro é iniciante na política. Valor Econômico, São Paulo, 3 out. 2018. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/10/03/nucleo-duro-de-bolsonaro-e-iniciante-na-politica.ghtml. Acesso em: 7 jul. 2021.
FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan. BOYCOTTBLIZZARD: capitalismo de plataforma e a colonização do jogo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. XX-YY, abr./jul. 2020.
“Nossas vidas são território ocupado. [...] Não apenas o nosso tempo, mas também as nossas ambições, nossa sexualidade, nossos valores, nossa própria concepção do que significa ser humano. Está tudo ocupado, moldado de acordo com as demandas do mercado.” (CRIMETHINC, 2012, p. 12)
“A variedade, tanto na sociedade quanto na agricultura, longe de ser limitada, deve ser promovida como um valor positivo. Estamos agora muito familiarizados com o fato de que quanto mais simplificado for um ecossistema – e, na agricultura, quanto mais limitada for a variedade de espécies envolvidas – mais provável é que o ecossistema se decomponha. [...] O aspecto mais desastroso das metodologias agrícolas predominantes, com ênfase na monocultura, híbridos de culturas e produtos químicos, tem sido a simplificação que introduziram no cultivo de alimentos – uma simplificação que ocorre em uma escala tão global que pode muito bem lançar o planeta de volta a um estágio evolutivo onde poderia suportar apenas formas de vida mais simples.” (BOOKCHIN, 2021)
Murray Bookchin falava sobre variedade, e é um pouco o elogio da variedade o tema deste texto. A diversão tem a ver com nossa conversa: não falaremos de agricultura, mas de videogame, que - por estranho que possa soar - é coisa muito parecida. Como frequentemente nos surpreendemos esquecendo e Bookchin faz o favor de lembrar, “A agricultura é uma forma de cultura” (BOOKCHIN, 2021), e sua redução a um mero negócio é um problema que precisamos resolver. Com o videogame não é diferente.
O entrosamento do videogame com o capitalismo se dá, nas tendências mais recentes, de duas formas: a ludificação do trabalho ou dos estudos através da gamificação e a profissionalização do jogar via e-sports e streaming - com interpenetrações entre essas duas últimas. Todas levam a um destino monocultural, a uma desertificação.
De acordo com Aline Job,
“a gamificação surgiu como uma estratégia de negócio para o engajamento de consumidores de produtos e de serviços e os resultados dos usos permanecem atrelados, de forma bastante forte, aos programas de fidelidade [...] e aos incentivos contínuos de atividades gamificadas para que o usuário ou a usuária se mantenha no ciclo de progressão.” (SILVA, 2019, p. 1222)
Ou seja: a gamificação aparece como técnica de produção de um consumidor perfeito, através da aplicação de elementos de jogo em contextos de não jogo. Posteriormente será usada na sujeição de trabalhadores e estudantes. O que a gamificação não é: o uso dos videogames na sala de aula ou nos espaços de trabalho tal como eles se dão na cultura do videogame. Embora tecnologias digitais e até games possam ser desenvolvidos para servir à produção de um consumidor, estudante ou trabalhador perfeitamente produtivos, não é o fato digital nem o game como produto aplicado que constitui a gamificação: sua finalidade é a fabricação de subjetividades hiperprodutivas e não a oportunização de uma experiência de jogo - quanto mais invisíveis os elementos de jogo, mais perfeita é a gamificação. Essa subjetividade hiperprodutiva atualiza o trabalhador clássico, disciplinado, para uma realidade de capitalismo global informatizado que nunca descansa e nada perde. De acordo com Job, PJ Rey define a gamificação como “uma nova forma de condicionamento [...], a padronização de indivíduos que resolvem problemas e se automotivam, desenvolvendo sujeitos que correspondem às necessidades do capitalismo tardio.” (SILVA, 2019, p. 1226) Ainda: “a gamificação quer se associar à ideia de jogo como algo não produtivo, para assim mascarar sua manipulação ou exploração, que, se fossem evidentes, causariam um desencanto em relação aos sistemas gamificados.” (SILVA, 2019, p. 1226)
Já nos anos 80 os microcomputadores eram vendidos como um meio para a diversão e para o trabalho, investimento no futuro profissional e no lazer do futuro, máquina que se refere igualmente ao brinquedo e ao instrumento, se destina tanto ao uso lúdico quanto ao uso laboral. A transformação do trabalho em lazer, ou o apagamento da fronteira que separa esses tempos, embora constituísse um horizonte otimista na cultura hacker, não tem bom destino no capitalismo. Essa perturbação acaba por borrar as diferenças entre o tempo controlado e o tempo relativamente livre do descanso, significando que estamos sempre produtivos, disponíveis para atividades lucrativas. Todo o tempo se torna um tempo sem fricção e sem medida, superveloz, uma vez que não há mais fim nem começo. Dos serviços de delivery “à distância de um toque” ao feed das redes sociais que nos embalam numa torrente de informações que lemos sem demora pois ansiosos pela próxima manchete urgente ou promoção imperdível que a rolagem promete, as plataformas formam pessoas que não são direito nem leitoras, nem produtoras, nem consumidoras, nem trabalhadoras, nem jogadoras… embora sejam tudo isso num potencial nunca realizado, pois permanentemente frustrado pela promessa seguinte - no tempo interminável da supervelocidade, pessoas são meras condutoras de fluxos, cujas particularidades são reconhecidas apenas como dados disponíveis para uso publicitário. A pessoa-condutora-de-fluxos se encontra tragada pelo feed. A aplicação de uma lógica do feed aos contextos de trabalho tem como objetivo nos tornar hiperprodutivos no curto prazo, até o esgotamento e a substituição por novos indivíduos motivados, abusando da insensibilidade com que as novas tecnologias sociais digitais informam a experiência do usuário - é o usuário a figura que melhor define esse novo papel borrado do nunca-exatamente-esse-ou-aquele-papel. Esse estado indefinido do ser que nunca está fixo num papel social disciplinado, de certa forma próximo ao que seria um ideal de vida liberada do capital, se torna - no capitalismo - a eternidade de um servir sem parar ao capital. Ao contrário do esperado e prometido, há uma simplificação no sentido negativo que Bookchin confere. No inferno produtivo, nem se divertir é divertido.
A gamificação seria uma das tendências. A segunda de que vamos falar são os e-sports. O que define os e-sports não é o reconhecimento de elementos esportivos no videogame como a competição, o desenvolvimento de habilidades ou a composição coletiva de regras. Esses são aspectos comuns ao videogame em geral (embora o videogame não-esportivo seja uma realidade, apenas em proporção menor e menos presente no imaginário médio sobre o videogame). O que realmente define a categoria e-sports como ente cultural destacado é sua adequação ao esporte na forma como ele aparece no grande empreendimento, nos megaeventos, no entretenimento de massa televisionado, nos grandes clubes etc. Em outras palavras: o esporte aqui é o esporte como modelo de negócio, definindo-se a partir de suas partes mais acessórias, que servem para converter uma cultura esportiva em condutora de fluxo de capital a se acumular.
Não faz sentido, portanto, questionar a validade do videogame como esporte avaliando se suas características mais essenciais são condizentes com aquelas dos esportes tradicionais, que são assim reconhecidos sem dificuldade, como o futebol ou o xadrez. O resultado dessa avaliação será falsa pois só serão conformados aos e-sports aqueles jogos que naturalmente possuem as características necessárias como seu valor competitivo, um certo grau de complexidade nas regras que permita variação entre as habilidades dos jogadores e o apelo de uma partida como show de entretenimento. Somos forçados a concluir que videogames são esportes se partirmos daí, uma vez que nunca veremos jogos experimentais, com foco em narrativa, não-competitivos etc. em tal situação - e, caso esses outros tipos de jogos acabassem na condição de e-sports por algum acidente de percurso, o público e não a crítica tomaria a dianteira na recusa. O dilema é parecido com o videogame como arte ou os chamados art games: certos tipos são adequados, outros acabam sendo expelidos por suas próprias características.
O videogame sofre constantemente essa pressão para se conformar a campos que estão além do seu próprio, o que em parte é herança de suas origens transdisciplinares. Alguns campos são mais lucrativos e outros apenas metabolizantes. As questões “videogame é arte?” e “videogame é esporte?” nos envolvem em discussões infrutíferas de conclusões auto-evidentes (é arte o que serve bem ao campo da arte e é esporte o que serve bem ao campo do esporte) e deixam escapar que nenhum dos dois acolhe o videogame em sua variedade. O problema não está exatamente aí, pois não nos ajudaria em nada se todos os videogames fossem arte ou todos fossem esporte: essa adequação seria inimiga da variedade, pois seria necessário fazer o encaixe no campo, cada campo contendo seus próprios limites. Seria absurdo imaginar todo jogo como arte e esporte ao mesmo tempo - a não ser que estejamos falando de uma performance de jogador esteticamente fora de série, como um tipo de futebol-arte, mas nem mesmo o futebol-arte é arte. O jogo como “fita” - obra acabada, desse ou daquele gênero - é muito pouco provável que se encaixe em ambas categorias, que possuem funções muito diferentes, e isso teria pouco efeito caso viesse a ocorrer. O que nos interessa é que essa associação a campos mais fortes se intensifica num momento em que o videogame perdeu o lugar que tinha no chão da cidade e se firmou como diversão doméstica na experiência majoritária; a falta de um ambiente próprio, no sentido territorial bem concreto do lugar em que se pisa, é uma novidade na história do videogame (ou das diversões populares, para um recorte temporal mais amplo). O resultado dessa falta de um ambiente menos controlado é que o conhecimento do videogame em sua variedade é obstaculizado por uma curadoria algorítmica que vai privilegiar os tipos de jogos mais redundantes, entregando-os a consumidores cada vez mais especializados, num processo de eliminação dos riscos no modelo de negócio. O jogador também passa a ser cultivado numa tendência monocultural, sendo a profissionalização do jogar o estágio mais crítico dessa especialização. No lugar de um momento de lazer e livre descoberta, o jogar se constitui como uma segunda, terceira ou quarta jornada de trabalho, eventualmente remunerada, o que é também mais uma forma de prender o jogador nessa relação. A remuneração do lazer profissionalizado - aliada à precarização do trabalho - passa a integrar a renda necessária para viver, de forma que o jogador se torna financeiramente dependente do jogo, garantindo a fidelidade do público-consumidor. Em muitos casos, é apenas a esperança de uma remuneração (monetização, no vocabulário das plataformas) que garante essa fidelidade - uma espécie de escravidão por dívida descolada, divertida e high tech, frequentemente com tintas progressistas. Segundo a razão capitalista que nos domina, investir tempo e esforço numa atividade de lazer se torna uma escolha ilógica quando a outra opção de relação com o mesmo tipo de atividade promete ganho em dinheiro. Também se torna ilógico escolher um jogo independente obscuro enquanto há títulos muito mais lucrativos no sentido de gerar engajamento nos fluxos algorítmicos das plataformas. Como o nosso tempo de atenção disponível é limitado, fazemos escolhas em prejuízo dos jogos que não nos pagam.
O streamer - o usuário que joga online como show performático - apresenta maior abertura para a diferença do que o jogador profissional de e-sports, pelo menos em teoria. Na prática, a escolha por jogos que não redundem os fluxos algorítmicos são punidas pelas plataformas, não sendo anexadas nas tags e marcas mais movimentadas. Alguns nichos menos lucrativos e de crescimento mais lento, não associados a jogos e-sports, se formam ao redor de gêneros que se adaptam melhor ao show, como é o caso dos jogos de terror. Jogos voltados ao público infantil como Minecraft também constituem nichos lucrativos - no caso de Minecraft, o título sozinho é um nicho e rivaliza com os e-sports mais fortes. O mercado, na forma dos dados mercantilizados, é o curador mais forte do videogame online. Isso constitui ameaça à variedade dos jogos, autores e jogadores, estabelecendo uma crescente pauperização cultural e política no horizonte do videogame. A consequência política já se apresenta de forma muito evidente, como podemos ver no fenômeno do fascismo gamer.
A ideia de desertos divertidos que proponho no título deste artigo deriva dos desertos verdes da crítica campesina às monoculturas, numa tentativa de estabelecer analogias e pontos de contato entre agricultura e cultura do videogame. Como explica Vanderlei J. Zacchi em seu artigo sobre as Visões de Cultura no MST (ZACCHI, 2010),
“A imbricação entre o cultivo da terra e a identidade cultural de comunidades rurais é bem ilustrada pelo caso dos chamados desertos verdes, que são enormes áreas de monocultivo de eucalipto. Suas consequências podem ser múltiplas e duradouras. No âmbito ecológico e agrário, podem ocorrer a desertificação e a diminuição da biodiversidade. No âmbito econômico e sociocultural, a monocultura de eucalipto pode causar a especialização da atividade de produção, o que implica o empobrecimento de técnicas agrárias e a ruptura de tradições produtivas, como a pecuária e agricultura de subsistência, que ainda hoje resiste nos pequenos espaços que separam as grandes propriedades. Estendendo-se por áreas gigantescas, essas plantações de eucalipto englobam diversos latifúndios, e essas pequenas áreas que existem entre eles podem desaparecer.”
Em suma: os desertos verdes produzem degradação ambiental e aculturação dos povos, reduzindo a variedade de técnicas, artes, seres e saberes por onde passa. Que o caráter “verde” da coisa não iluda os olhares urbanizados: o verde aqui é outro, um verde de empobrecimento e esquecimento não só dos meios de sobrevivência, mas dos modos de vida em toda a sua complexidade, incluindo as cosmovisões e tradições populares. Tais desertos não servem para ninguém viver neles, mas são um ótimo negócio justamente para quem não vive ali, eis o problema. No Manifesto das Mulheres da Via Campesina (2021) de 2008, as militantes feministas declaram que “as empresas do agronegócio não estão preocupadas em produzir comida, só em produzir lucro, transformando o campo em desertos verdes (de eucalipto, de soja, de cana).” Em Zacchi, para os campesinos, o “temor maior é que a homogeneização das plantações venha a corresponder a uma homogeneização semelhante no modo de viver e pensar da população local.” (ZACCHI, 2010 p. 2) O deserto verde, “mais que um oxímoro, torna-se uma metáfora para o pensamento único.” (ZACCHI p. 1) Essa preocupação com o “pensamento único” também aparece em Murray Bookchin, quando diz: “o que marca de forma única a mentalidade burguesa é o rebaixamento da arte, dos valores e da racionalidade a meras ferramentas” (BOOKCHIN, 2021); antes dele, Adorno e Horkheimer já falavam sobre esse pensar burguês, que chegam a chamar de “antirrazão do capitalismo totalitário” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 53), em que “a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986). Não há exatamente um fim e começo dessa simplificação negativa: o pensamento único é produzido pela degradação que produz. Como coloca Milton Santos (SANTOS, 2013, p. 52), o “atual sistema técnico dominante torna-se invasor quando não consegue exercer sua tendência ao autocrescimento: é desse modo que ele procura impor sua lei aos sistemas técnicos vizinhos.” A devastação como projeto cria o ambiente devastado como chão em que pisamos, e daí tendemos à incapacidade de imaginar outra coisa que não seja sua ampliação.
Esse tipo de totalitarismo de mercado, já expresso na ideia de antirrazão do capitalismo totalitário de Adorno e Horkheimer, alcança uma capilaridade e força sem precedentes com o surgimento da internet e, principalmente, com o fortalecimento das big techs, como Morozov (2018) nomeia as empresas de tecnologia, frequentemente oriundas do Vale do Silício, que baseiam suas atividades na extração de dados (a partir dos inputs “voluntários” dos usuários, entre aspas pois sua adesão está psicologicamente condicionada via design ou imposta pela escassez de alternativas). São exemplos de big techs as empresas-plataforma como Google, Facebook, Twitter, Amazon, entre outras, sempre em processo de expansão por aquisição de empresas menores ou por cooptação de mercados consumidores em função da concorrência predatória com as economias locais, como se dá no caso da relação entre a Amazon e as livrarias tradicionais. Além disso, as big techs ocupam com serviços privados precarizados os vácuos deixados pelas políticas de austeridade neoliberais - o crescimento da Uber no Brasil se relaciona com os preços abusivos das passagens de ônibus, por exemplo. O que deve ficar claro para nós é que o fortalecimento dessas empresas ganha impulso com o enfraquecimento do bem comum, de modo que a máxima tatcheriana “não há alternativa” se instala não apenas na nossa imaginação política, mas nas possibilidades que temos para dar conta de “ganhar a vida”. Acabamos presos na posição ambígua entre consumidor e escravo das plataformas, na esperança de monetizar tudo o que pudermos, cada pequeno traço do que fazemos e do que temos, seja um carro, nossa força de trabalho, a água do banho que tomamos, nossa personalidade ou nossos momentos de lazer. A extração de dados se converte na mineração dos seres humanos - e, assim como se dá no garimpo, tende ao esgotamento. No caso dos seres humanos, o esgotamento da própria humanidade, o que ironicamente nos recoloca na natureza, ao menos nas condições em que ela se encontra no capitalismo: vazia de si e vetor de capital.
De volta a Bookchin, ele segue na sua crítica da agricultura capitalista que “concebe o cultivo de alimentos como uma empresa a ser operada com o propósito de gerar lucro em uma economia de mercado”, de forma que ela “não difere mais de qualquer ramo da indústria como a siderurgia ou a produção de automóveis” (BOOKCHIN, 2021). Esse achatamento de diferentes ramos produtivos ocorre porque, do ponto de vista burguês, a atividade interessante não é a produção de alimentos ou de videogames, mas a própria exploração do trabalho a produzir mais valia. O investimento neste ou naquele ramo é uma escolha de cálculo numérico subordinado a esse acúmulo, indiferente às características das atividades - por isso elas podem ser devastadoras em muitos sentidos, já que tais consequências entram no cálculo apenas marginalmente, quando a aceleração desse modo de funcionamento empresarial é desafiada por crises que forçam a sociedade a questioná-lo, pois seguir na mesma direção seria insuportável. Técnicas de controle social como a gamificação operam esse achatamento de modo a dar continuidade a essa indiferença, ao mesmo tempo em que procuram compensar o sofrimento com prazer lúdico.
Compreendendo que há verdes e verdes, podemos pensar a diversão como coisa pra se desconfiar, nem sempre positiva, definindo o deserto divertido como uma prática capitalista que preda a variedade nas formas de criar, distribuir, jogar e pensar videogame, deixando em seu rastro um vazio de possibilidades, enquanto nos torna insensíveis a esse processo, nos encantando com prazeres prometidos e imediatamente traídos pela rotina cruel do trabalho.
O caráter totalitário da antirrazão capitalista se dá pela sempre intensificada subalternização de tudo à sua indiferença devoradora, pelo esmagamento de tudo pelo nada, da vida pela morte. “A antirrazão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 53) As necessidades aqui devem ser compreendidas com generosidade, como necessidade de beleza, de alegria, de prazer e de tudo que nos difere de uma mercadoria. Em outras palavras: gozar a liberdade é necessário. Mas a aplicação desse gozo a uma máquina de fazer dinheiro de gringo é uma farsa, já não estamos fazendo nada de necessário, mas obedecendo um imperativo de força, sofrendo uma dominação.
E aí tem uma relação desses dois mundos que é a seguinte: o mundo do trabalho, por estar melhor conformado ao capitalismo, tende a impossibilitar mundos alternativos (porque empurra a margem pra fome - e aí pro trabalho alienado em outros campos que não o videogame, o que acaba com o tempo de seus atores - e o videogame profissionalizado pro trabalho alienado no próprio campo do videogame). A margem tende a antagonizar com o mundo do trabalho porque entende que, ao mesmo tempo em que não há emprego para muita gente lá dentro - e muito menos para indivíduos de esquerda - não cabem coisas que são preciosas, que são nexos culturais importantes, e que estão sujeitos à eliminação nesse processo de integração ao mundo do trabalho. Percebam que o antagonismo não se dá num nível intra-classe, de trabalhador contra trabalhador, e sim entre os atores marginalizados e o sistema que os ameaça ora com a morte cultural, ora com a fome. O que ocorre é uma incapacidade sistêmica que a cultura de videogame como trabalho tem em absorver o videogame como contracultura sem aleijar o segundo. O que resta ao videogame como contracultura, para que continue existindo na sua integralidade, é realizar-se contrariando ou pelo menos sendo diferente das tendências e princípios que regem a narrativa (e o modelo de produção que dá uma razão histórica pro surgimento dessa narrativa) dominante.
Nave seria um fliperama "normal": vinculado a um título |
Gabinete rodando uma placa multijogos, nao seria um zinerama. |
O Pirata de Prata pode ser considerado um zinerama. Embora seja anterior ao conceito, experimenta as características básicas apresentadas neste texto. |