sábado, 13 de julho de 2024

CONTRA O NETWORKING: Abolir o conformismo parassocial e liberar a imaginação socialista

O sujeito neoliberal como empreendedor de si mesmo é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito. Entre empreendedores não surge amizade desinteressada. Contudo, ser livre significa originalmente estar com amigos. (...)
Hoje, as pessoas são tratadas e comercializadas como pacotes de dados que podem ser explorados economicamente.
Byung-Chul Han

Para que a revolução social possa realizar-se, é necessário que o espírito popular encontre novas formas de organização societária.
Piotr Kropotkin


Acho que todo mundo familiarizado com redes sociais já ouviu falar em networking. Vocês sabem: quando nos cercamos de gente que pode nos oferecer vantagens econômicas. Como seria possível criticar um recurso tão básico de sobrevivência no mundo da precarização capitalista? "O que colocar no lugar", não é mesmo? Talvez seja impossível evitar o networking quando nosso trabalho depende das redes sociais, já que boa parte da coisa está automatizada - mas daí a concluir que a entrega obediente seja tudo o que podemos fazer, acho uma postura conformista demais. Em geral a negação da crítica é apenas o neoliberalismo falando mais uma vez: não há alternativa, não existe sociedade, vamos todos morrer no capitalismo e salve-se quem puder. Contra esse tipo de fatalismo, sigamos a recomendação de Paula Sibilia: É preciso desnaturalizar as novas práticas comunicativas.

FAMÍLIA MANSON

Vamos dar uma olhada no seguinte episódio: Charles Manson foi um supremacista branco que fundou e liderou uma pequena seita pós-hippie na Califórnia sessentista. Manson dizia que estava para acontecer uma grande guerra de negros contra brancos, e usou seus seguidores para praticar uma série de assassinatos de brancos, que serviriam para incriminar negros e provocar o estopim da tal guerra. Hoje em dia ele talvez fosse presidente dos Estados Unidos ou, quem sabe, um digital influencer muito famoso. Talvez acabasse modelando sua doutrina para soar mais palatável à sensibilidade mainstream, sem a parte dos assassinatos (ou terceirizando essa parte para seu fandom) e afirmando que luta contra "o politicamente correto" ou a favor da "liberdade de expressão", à moda alt-right. Mas no fim dos anos 60 não havia capitalismo de plataformas para potencializar o culto à sua personalidade, e ele acabou se tornando apenas um presidiário excêntrico bastante explorado na mídia. Ótimo para assustar pais de adolescentes rueiros e vender entretenimento exploitation.

Manson já tinha passado pela prisão antes de fundar sua seita, por crimes não relacionados como estupro e roubo, e foi numa dessas passagens que se fascinou por um livro: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie. O best-seller foi publicado em 1936, recebendo sua última revisão em 1981. O livro, lido e comentado ainda hoje, é basicamente um curso sobre manipular os outros com truques simples de psicologia positiva (Carnegie confere dignidade científica ao seu curso citando o "mundialmente famoso" B. F. Skinner, entre outros) e acumular um séquito para benefício próprio.

Trago a história de Manson não para dizer que o networking sempre produzirá experiências fascistas ou fascistoides em qualquer contexto em que ocorre, mas para ilustrar o fato de que o networking não contém nada que possa evitar tais consequências, e os piores indivíduos tendem a ser os mais beneficiados. Isso porque não há no networking qualquer fundamento ético ou político, apenas uma razão econômica profundamente antissocial posta em funcionamento, sendo perfeitamente compatível com a formação de seitas ou grupos de ódio. A economia capitalista, sem resistência social capaz de lhe pôr um fim ou pelo menos frear seu avanço, sempre irá desaguar no esgoto do fascismo - se não em termos e conteúdo, certamente na sua forma. O outro é alguém que nos serve ou serve para morrer de fome.

Imitações mais atuais do Como Fazer Amigos incluem malandragens para se dar bem nas redes sociais e se disfarçam como cursos de administração e empreendedorismo. Carnegie ainda não tinha dado um nome a esse grande segredo que a escola e os odiáveis professores comunistas escondem dos mortais, mas hoje o networking é divulgado o tempo inteiro, considerado uma técnica de "marketing pessoal" - literalmente nos tomarmos como mercadoria. Se relacionar com as pessoas é, de acordo com as cartilhas de gestão empresarial, o trabalho necessário para que possamos nos vender bem, essa sendo a principal finalidade de tudo o que fazemos.

UM LIVRO DE AÇÃO

O comunismo não precisa nascer do útero do futuro, ele está aqui, em nós mesmos, na vida imanente do conhecimento compartilhado.
Franco Berardi

Carnegie diz que escreve um livro de ação, despreza os "tomos de psicologia" de onde não se aprenderia nada de útil, despreza a educação formal que não nos ensinaria a única coisa que importa: ganhar dinheiro tirando vantagem dos outros. Carnegie também insiste que devemos correr da discussão e da crítica para não queimar pontes, e reduz as "cores políticas" de um indivíduo a um banco de dados que devemos acessar para explorar numa conversa produtiva - nada diferente das big techs e seu grande negócio de erosão das democracias do sul global. É muito mais generosa a definição de Milton Santos: política como arte de pensar as mudanças e de criar as condições para torná-las efetivas. Para Carnegie, que se dane, podemos dar nosso melhor sorriso a quem constrói efetivamente a realidade que nos tortura e mata.

A "ação" a que Dale Carnegie se refere não tem nada a ver com agir, mas com não pensar. O livro é ativamente anti-intelectual, confunde o conhecimento com um excesso dispensável, uma perda de tempo que pode ser substituída por dados sobre comportamentos e preferências das pessoas, informação-mercadoria. Os liberais aprendem que a escola serve para nos inserir no mercado e disso extraem que é inútil qualquer coisa que ali ocorra fora desse propósito. Essa visão da educação se manifesta hoje no Novo Ensino Médio e suas matérias esvaziadas de conhecimento como "Projeto de vida", que traduzem a vida como apenas mais uma estria nos circuitos do capital.

O networking nem sequer é um conceito, não está na ciência, nem na filosofia, e não tem raiz no saber popular. É invencionice publicitária divulgada por trambiqueiros e aceita sem demora pelos tipos mais ambiciosos e afoitos. As palavras significam coisas, tem história e tem vida, trazem consigo formas de organização e modos de pensar - o fato do anglicismo já deveria ligar um sinal vermelho, aguçar nossa curiosidade pela origem da papagaiada, mas parece que preferimos nos deixar seduzir por cada novo concept que aparece. Ah, o concept! A publicidade fez esse favor de separar o pensamento dos conceitos, que se converteram em palavras lucrativas. Sua capacidade de percorrer a economia dos memes é o que substitui sua substância, e o volume de repetições atesta sua importância.

Talvez o networking seja ferramenta indispensável para a sobrevivência do indivíduo sujeito à gig economy generalizada que se instalou no cenário de escassez de empregos tradicionais e de perseguição violenta dos modos de vida comunais. Por isso é compreensível que indivíduos desesperados se apeguem a jargões como se fossem eles que botam comida na mesa - e não a pequena parte do trabalho que sobra da extração da mais valia. Alguns podem se envolver em defesas apaixonadas, se gabando por serem homens de ação - ou seja, que desprezam conhecimento e aceitam tudo o que é dito pela mão que segura sua coleira. Podem se gabar de seu realismo ignorante praticista, duvidando da justa desconfiança e descartando-a com o orgulho típico dos idiotas manipulados que se acham espertos.

Mas participar não é opcional. Boa parte do networking está automatizado - podemos avaliar em números o quão importante (o que também significa "lucrativa") é uma pessoa a partir dos mostradores em seus perfis de rede social. Estar localizável (e quantificável) nas redes pode ser um fator decisivo na hora da contratação. E naturalmente queremos estar mais próximos dos números altos (que podem ser pessoas, empresas ou pessoas-empresa) e distantes dos perfis que podem colocar nossos números em queda. Buscar uma boa posição no networking não é muito diferente de apostar na bolsa de valores, com o agravante de que cada pessoa se torna uma empresa de capital aberto, e o dinheiro que jogamos são nossos afetos e subjetividades (até porque somos pagos mais com reforço psicológico do que com dinheiro). O problema não é a "cultura do cancelamento", que os liberais acham tão preocupante. Ela é apenas um dos efeitos do networking, que converte relações sociais em jogos de investimento, marca os perfis arriscados e elimina das nossas práticas sociais aquelas incompatíveis com o cálculo financeiro. Os perfis mais afetados pelo tal do "cancelamento" são, na maior parte, aqueles que nem tiveram acesso às vantagens do networking. Só é descartado quem não pode investir grandes quantias em seu próprio perfil, contratar uma equipe multidisciplinar para gestão de crise e recolocar sua marca na competição.

O segredo do sucesso é a herança, a escravidão e o roubo. Não há técnica de marketing que desfaça isso. Precisamos examinar o que os patrões, gerentes, influencers e embromadores do RH repetem sem parar. Fora disso, apenas a colaboração anticapitalista (esteja ela fundada nas doutrinas de esquerda ou na tradição dos povos) consegue construir alguma coisa. E aí não se trata de segredo nenhum, mas de simples prática, estudo (pelos livros ou pela escuta dos mais velhos) e organização (seja qual for a linha política dos seus). Aí está nosso verdadeiro tesouro.

HOMEM DE VALOR

Só os atores hegemônicos se servem de todas as redes e utilizam todos os territórios.
Milton Santos

A extrema direita se dá muito bem com o networking e inclusive expande seu funcionamento sem nenhuma vergonha. Nas seitas misóginas contemporâneas como redpillincel MGTOW, o sexo é traduzido como um mercado. Nelas, os homens tem um valor de mercado que é determinado por fatores como ser rico ou bonito - a beleza aqui ganha contornos eugenistas. As pessoas são categorizadas em tipos de "alto valor" e "baixo valor", toda relação social ou sexual sendo um investimento com seu preço, cada gesto sendo calculado numa tabela... num primeiro momento essas coisas podem soar como metáforas inofensivas, mas é tudo bem literal e profundamente fundamentado no sistema de classes capitalista e na família nuclear. Se você quer entender o que é o networking sem disfarces, sem a maquiagem progressista, aí está. O misógino militante o pratica de forma muito clara. Cada pessoa só tem valor na medida em que pode ser utilizada por outra mais poderosa.

BIBLIOGRAFIA

BERARDI, Franco. Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem
CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas
GUINN, Jeff. Manson
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica - o neoliberalismo e as novas técnicas do poder
KROPOTKIN, Piotr. Socialismo
SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar
Por uma outra globalização
SIBILIA, Paula. O show do eu

sábado, 20 de novembro de 2021

O QUE É O RAIV?

A oposição artística é sempre uma das forças que podem contribuir de modo útil para o descrédito e para a ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe trabalhadora de aspirar um mundo melhor, e todo o sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
André Breton e Diego Rivera, Por uma arte revolucionária independente

Quem conhece os jogos Mais Ódio Menos Playstation já deve ter topado com a sigla RAIV (Red & Anarchist Independent Videogame), que volta e meia aparece nas telas de abertura. Às vezes a sigla vem acompanhada dos dizeres "contra o fascismo, contra o empreendedorismo, contra a identidade gamer, independente por princípio", que vou tentar desenvolver um pouco mais hoje.


CONTRA O FASCISMO

Siglas como RABM (Red & Anarchist Black Metal) e RASH (Red & Anarchist Skinheads) servem de inspiração pro RAIV. Assim como nesses dois casos, o videogame sofreu uma forte penetração fascista a ponto de transformar reacionarismo e videogame quase em sinônimos no imaginário coletivo, fato conhecido e utilizado por líderes de extrema direita como Trump e Bolsonaro. O RAIV serve para denunciar e expulsar essa presença e apelar para a necessidade de um programa de esquerda para o videogame, que responda aos problemas complexos do capitalismo com igual complexidade, sem deixar que a farsa nazifascista siga conquistando aqueles que recusam o neoliberalismo nas suas manifestações progressistas.

CONTRA O EMPREENDEDORISMO

O maior problema do videogame é a falta de imaginação: estamos totalmente capturados pelo espírito careta e automático do vale do silício e pelo charlatanismo coach. Somos incapazes de nos organizar coletivamente fora da forma-empresa. Isso é tão terrível que, mesmo individualmente, cada um de nós está transformado numa pessoa-empresa - competimos para sobreviver o máximo que pudermos ao poder assassino do monopólio, na esperança de que seja o nosso nome a marca que estampa o topo da pirâmide. A cena indie é, antes de tudo, um encontro de empresas - sejam elas grupos de pessoas ou indivíduos, tanto faz. Hierarquia e injustiça vêm junto no pacote, e o mantra "seja seu próprio patrão" é repetido como um sample porque não conseguimos tirar o patrão das nossas cabeças programadas. É urgente que a gente tenha disposição pra correr o risco de passar por louco, pois só correndo esse risco seremos capazes de abrir espaços para imaginar as nossas próprias instituições e dinâmicas de contrapoder. Comecemos esse exercício de imaginação sozinhos ou acompanhados, mas com a solidariedade no horizonte pra que a elaboração prática subsequente seja sólida e duradoura. Temos que fazer nosso videogame partindo de outros critérios de sucesso: fora da competição predatória, fora das hierarquias sanguessugas. Uma empresa tradicional não pode fazer RAIV!

CONTRA A IDENTIDADE GAMER

Tirar o gamer da nossa imaginação! A indústria de games, na medida em que vai se tornando maior e mais cara, se torna também menos disposta a correr riscos comerciais. Através da publicidade, o videogame mainstream provoca uma hipertrofia do seu público-alvo, que se especializa e desemboca na figura do gamer. Em meados dos anos 90, o gamer é reduzido a uma demografia masculina, jovem e heterossexual. Nos anos recentes, esse recorte sofre um envelhecimento, acompanhando a maturidade dos jogadores. Tentativas progressistas de atualizar a identidade gamer encontram a resposta reacionária, que não está disposta a abrir mão do caráter estritamente masculino do grupo. O RAIV não deve cair na armadilha de fidelizar públicos lucrativos - seja lá a que marcadores identitários estejam associados - compreendendo que o interesse dos jogadores (não mais gamers) é variado e sensível às nossas provocações. A homogeneidade das demografias consumidoras é uma ilusão do mapeamento publicitário e não devemos utilizá-la, com o risco de que a ilusão se torne realidade por simples repetição. O interesse dos jogadores nem sempre está em sintonia com a intuição dos joguinistas, que não devem deixar de fazer o tipo de videogame que lhes interessa para obedecer caprichos do mercado - embora esses momentos possam coincidir, exigindo nossa atenção para desviar dos rumos masculinistas e reacionários.

INDEPENDENTE POR PRINCÍPIO

O videogame independente hegemônico perdeu o sentido de tal maneira que podemos ver jogos ditos indie sendo publicados por grandes marcas, por grandes personalidades do mainstream, com assessoria de grandes veículos de mídia, sob títulos de grandes franquias etc. Com frequência, também, o indie aparece como rótulo de jogos em pixel art ou com qualquer estética associada ao "retrô". Mesmo quando usado corretamente, descrevendo indivíduos ou pequenos estúdios publicando jogos por meios próprios, "independente" pode significar apenas uma condição de precariedade a ser superada rumo ao mainstream, com o horizonte da produção sendo ocupar um lugar de destaque na indústria cultural - posição de absoluta dependência. O "independente por princípio" seria, em sua faceta negativa, uma postura ética de recusa ao mainstream e, em sua faceta positiva, um esforço em construir instrumentos que ajudem a manter viva uma cultura de videogame com ampla margem de desobediência às tendências do mercado. Independente não como "mainstream que não deu certo", mas como esforço de fazer dar certo aquilo que o mainstream elimina com sua inércia monopolista.

Espera-se que, em algum grau e sem deixar de lado o apuro estético, sendo preservada a liberdade criativa do joguinista, os jogos RAIV sirvam como peças de propaganda anticapitalista e/ou antifascista. Isso seria muito coerente. Em suma, pode-se definir o RAIV como uma instituição popular do videogame independente contra o poder capitalista, expressa como organização (modelos alternativos de organização no videogame independente, em contraposição às formas da hegemonia liberal) e propaganda (jogos de conteúdo crítico ao capitalismo e suas instituições). Qualquer pessoa ou coletivo pode se apropriar da sigla, dando a ela uma interpretação e uso que julgar apropriada, inclusive expandindo, precisando ou questionando os argumentos deste texto.

sábado, 11 de setembro de 2021

COMUNIDADES NO SOLO DAS PLATAFORMAS

Texto apresentado originalmente como parte do curso Lugar de Jogo II: O jogo e redes de afetividade, sob convite do estúdio Game e Arte.

Hoje vamos falar sobre comunidades e videogame. Pra começar, vou pegar emprestada uma definição de Yuk Hui. Ele diz o seguinte:

Uma comunidade humana é muito mais do que a soma dos agentes humanos que a constituem; ela também inclui o ambiente e outros seres não humanos.¹

Sem deixar de celebrar as comunidades online, quero fazer um convite pra pensarmos as suas insuficiências, e como essas insuficiências se relacionam com as proibições das cidades capitalistas, que lhe são anteriores. Mas antes eu vou fazer um relato, sobre como eu tenho percebido o videogame independente, que é onde eu componho comunidade.

Assim como no streaming, o desenvolvimento independente tem uma espécie de cena, de atores, podemos chamar essa cena de comunidade. Mas essa comunidade do indie hegemônico nunca me convenceu, e parecia que quando falávamos de comunidade, estávamos falando de coisas diferentes. Tem um post no meu blog, chamado Comunidade VS Community², que fala o seguinte:

Fazer o community building, no jargão empreendedor, significa garantir atenção pros seus jogos, estabelecer dominância num mercado de gente desesperada por um pouco da atenção que você acumula. É uma economia do puxa-saquismo, mesmo. A comunidade quer o seu lugar e você não quer cair para a comunidade.

Uma perspectiva de esquerda não está preocupada com o mercado, mas com a sobrevivência das pessoas. Se essa sobrevivência passa pelo mercado e esse mercado não é sustentável, não é acessível para todos, então há um problema de estrutura. O liberal vai propor que é só uma questão de técnica, de compreensão das tendências e de talento em community building (que não mexe na estrutura, apenas abusa de uma estrutura já disfuncional). Em outras palavras: o liberal vai dizer que a miséria produzida pela estrutura é culpa individual daquele que não é talentoso em operar esse abuso. [Então ele acaba justificando a exclusão.]

A tarefa criativa da esquerda no videogame independente seria propor esses outros jeitos de sobreviver, de se organizar em comunidade.

Antes de continuar, só pra dar uma definição de esquerda e direita, que não tem diretamente a ver com partidos e candidatos. A definição é um pouco grosseira e super abrangente, mas vai ter que servir pra hoje. Pra direita, a sociedade é um acessório do mercado. Pra esquerda, o mercado é um acessório da sociedade. No capitalismo, as únicas coisas das quais não se abre mão, ou seja, não se mata nem se deixa morrer, são aquelas que tem valor no mercado. E algumas coisas são lucrativas como imagem mas descartáveis quando vivas, o que deixa tudo mais confuso.

Outra coisa que me incomodava no indie liberal era a construção de uma cena que não fazia contato com os jogadores locais, só com outros indies. Não faz sentido uma cultura local que ignora o local, focando num público-alvo que nem está presente, construindo a comunidade, e muitas vezes é um público gringo ideal, anglófono, gamer, usuário da Steam. A cena indie liberal, então, não rompe com o funcionamento das plataformas online, só as continua num ambiente offline que é controlado pelos mesmos atores que são fortes no mercado, ou seja, na Steam, nas redes sociais, em determinada plataforma que é fechada e pertence a algum bilionário gringo. Quando a comunidade não tem poder político, não tem como viver com liberdade no solo que pisa - o que é o caso das plataformas online - a comunidade se torna algo a evitar, um lugar onde não queremos cair, de modo que o sonho é estar acima dela, operando seu abuso, nos lugares de poder. Paulo Freire explica.

Essa falta de consciência sobre a não-naturalidade das redes online desenvolve, na gente, uma tendência a imitá-la fora dessas redes, o que significa fortalecê-las. Uma rede, de acordo com Milton Santos³, não é homogênea, porque ela é disposta sobre as irregularidades que já estavam instaladas. Por isso que o usuário da internet que é negro vai experimentar o mesmo racismo que já estava instalado na cidade, ou até intensificado, porque o offline e o online se confirmam, se validam reciprocamente e se reforçam. A tendência de uma rede, planejada como se fosse homogênea mas não sendo, é agudizar as injustiças já instaladas. A gente pode imaginar um lençol cobrindo uma cama cheia de cobras e lagartos: os volumes vão se formar, o lençol não vai eliminar as cobras e lagartos que estão debaixo. O Milton Santos vai explicar o poder hegemônico, do capitalismo global, a partir de verticalidades e horizontalidades: as verticalidades tentam colonizar tudo aquilo que sua rede pode percorrer, e as horizontalidades reagem ao poder vertical se conformando a ele ou escapando nas zonas cegas entre os pontos e linhas da rede, que tendem a ser cada vez menores. Nessas zonas cegas estão os que insistem na manutenção de modos de vida desajustados, não lucrativos. São as culturas de resistência, que teimam em não se deixar descartar necropoliticamente. O coletivo TIQQUN diz uma coisa muito interessante sobre as resistências, que é o seguinte: a unidade humana elementar não é o corpo - o indivíduo -, mas a forma-de-vida⁴. Isso significa que um indivíduo pode lidar de forma conformista com uma predação, e continuar vivo mesmo que tenha sido sacrificada uma forma-de-vida, talvez ele tendo sido o último dos seus.

Mas o se conformar ou não se conformar não é binário, sempre-sim e sempre-não, e as religiões afro-brasileiras sincréticas são um bom exemplo de como as culturas de resistência podem garantir que uma forma-de-vida continue mesmo sob predação, investindo no quase-sim ou quase-não. Como seria a forma sincrética de um videogame resistente, mais do que independente?

Gilbert Simondon⁵ diz que tudo aquilo que existe, ou seja, tudo aquilo que a gente pode reconhecer e dar nome, passa por um processo de individuação - se torna indivíduo. O indivíduo estaria permanentemente em formação, mantendo em si um potencial de se tornar outra coisa - a continuidade da existência da coisa é um processo de atualização de seus potenciais. Ser é preservar a possibilidade de vir a ser outra coisa. Não há energia na estabilidade total e completa, porque nesse estado o indivíduo se desagrega e deixa de ser. Por isso que o fascismo, no nosso caso o bolsonarismo, é tão apaixonado por morte: porque é apaixonado por uma estabilidade que é o estado em que as coisas morrem, deixam de ser.

Pra deixar claro: não estou sugerindo que uma comunidade online não seja uma comunidade, ela é! Mas as características do meio nos formam, e nossa capacidade de formar o meio é limitada pela abertura/fechamento que esse meio tem à nossa participação política, ou seja, à nossa capacidade de tomar decisões e participar do desenho desse meio. Eu gostaria de poder dizer que nós formamos as comunidades online na mesma medida em que elas nos formam, mas levando em conta a qualidade impenetrável das plataformas que são o solo dessas comunidades, somos muito mais formados por elas, somos muito mais sujeitados do que sujeitos-cidadãos (no sentido positivo que Milton Santos confere ao cidadão). A gente sente até no corpo o quanto somos formados pelas plataformas: nossas tendinites, problemas precoces de coluna e articulações, problemas de sono, ansiedade, estão sempre nos lembrando do tempo que precisamos passar online, produzindo dados pras plataformas, pra monetizar nossas existências precarizadas. Mas as plataformas não parecem sentir muitas dores, são muito indiferentes às nossas necessidades de gente que tem corpo e cansa, um pouco como seus donos: no quatro de julho o Mark Zuckerberg tava bem faceiro, num vídeo, surfando ridículo com uma bandeira dos Estados Unidos tremulando em alta velocidade! Aquela bandeira segurada por aquele cara (assim como o foguete lançado pelo Jeff Bezos, alguns dias mais tarde enquanto eu ainda escrevia este texto) representa as grandes empresas de tecnologia nos empalando sentados em cadeiras gamer. Eles ficam ricos, nós ficamos lesionados e traumatizados nesse lugar sem poder que é o de usuários de suas plataformas fechadas.

Vamos imaginar que cada comunidade online, por menor que seja - três pessoas, digamos - vai ter sempre uma quarta presença que é a do proprietário da plataforma (o Joãozinho, o Zézinho, a Mariazinha e o Jeff Bezos), e essa quarta presença vai ser tão ou mais determinante pra formação da comunidade do que qualquer um ali, mesmo que - ou até principalmente por isso - essa presença seja invisível, imperceptível na experiência cotidiana dos membros da comunidade. O ambiente, o solo da comunidade online, não é só a internet, mas a internet + a plataforma. A plataforma tem um funcionamento que nos incorpora, somos usuário ao mesmo tempo que peça da máquina. Mas somos peça intercambiável, e só interessamos à plataforma na medida em que servimos à sua operação principal, que é a extração de dados pra uso publicitário. Aquilo que ela produz numa dimensão mais visível pra nós: vídeos, áudios, interações… aquilo que chamamos de “conteúdo” ou “content” é esquema secundário pro modelo de negócios da plataforma, de forma que os produtos terão mais valor pela quantidade de dados que fazem circular do que por qualquer outra característica mais difícil de quantificar. Por isso eu costumo brincar que não existe nada mais sem conteúdo do que a criação de conteúdo. Não porque não tenha algum tipo de conteúdo, por superficial que seja, mas porque não vem daí sua utilidade.

Uma coisa importante: estar ou não estar no online não é uma questão de livre escolha, uma decisão tomada a partir de um julgamento moral de um indivíduo diante de opções abundantes. Quando nos colocamos na relação de despoder que é estar nessas plataformas que não nos pertencem nem nos respeitam, mesmo assim, estar nelas pode ser muito melhor do que estar nas nossas cidades, que podem ser mil vezes mais fechadas e violentas do que a pior das redes sociais. Mas as cidades não precisam ser assim.

Vilém Flusser⁶ vai introduzir o conceito de caixa preta. Ele fala que, desde a máquina fotográfica, os objetos técnicos passam a ocultar o seu funcionamento do usuário médio, de forma que ele só consegue ver o input e o output. E que seria desejável, então, uma abertura dessas caixas.

Mas a abertura da caixa preta deve coincidir com uma abertura das cidades, o que em grande parte significa abolir as catracas e as polícias. Internet aberta sem cidade aberta é apenas uma abertura parcial, não resolve o problema. Sem o passe livre, por exemplo, a mobilidade urbana segue racista e contra o pobre, porque o usuário do online não pode circular pelo offline, a cidade com catracas é um esquema pay to win. A cidade policial não garante que os negros e pobres voltem pra casa depois de ir e vir, fazendo com que circular pela cidade pra qualquer fim que não seja estritamente necessário se torne um risco que ninguém quer correr. A falta de uma circulação offline aberta vai afetar também a mobilidade online, e vice-versa. Por isso a gente não pode viver na cidade e pensar em projetos de vida comunitária totalmente apartados da cidade: mesmo que nossos projetos não contemplem essa relação online-offline, ela ocorre de modo invisível (oculta pela caixa preta) acompanhando a tendência hegemônica, concentrando os fluxos de capital sempre nos mesmos canais. Não é porque a gente não vê uma máquina que ela não está lá, tocando suas operações e nos sujeitando a seu funcionamento.

A gente não deve perder de vista o poder algorítmico das plataformas. Que é um poder tirânico não por ser algorítmico, mas por ser opaco, por ser fechado à nossa participação política. A gente só sabe que esse cálculo está a serviço de um uso publicitário, que por sua vez está a serviço do capitalismo globalizado. Os liberais tentam nos enganar dizendo que o trabalho de plataformas, que vai do uber e entregador de aplicativo ao streamer, é uma espécie de empreendedorismo. Mentira, é muito mais um tipo de mineração. Somos devastados do mesmo modo que um rio sofrendo o garimpo.

Mesmo assim, as cidades tem uma porosidade maior do que as plataformas online, pelo menos considerando a forma como elas são hoje, e eu acho que o videogame, especialmente, aproveita essa porosidade da cidade muito menos do que poderia. E aí eu vou aproveitar uma diferenciação que o Milton Santos faz entre cultura de massa e cultura popular. Ele diz o seguinte:

As classes médias amolecidas deixam absorver-se pela cultura de massa e dela retiram argumento para racionalizar sua existência empobrecida. Os carentes, sobretudo os mais pobres, estão isentos dessa absorção, mesmo porque não dispõem dos recursos para adquirir aquelas coisas que transmitem e asseguram essa cultura de massa. É por isso que as cidades, crescentemente inigualitárias, tendem a abrigar, ao mesmo tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem num jogo dialético sem fim.

A cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação. A cultura popular tem raízes na terra onde se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, por meio da mudança [lembram do Simondon?]. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo.⁷

Milton Santos não é contra a globalização, mas é contra a globalização capitalista e apologista de uma outra globalização, inclusive esse é o título do seu livro mais famoso⁸. Em termos zapatistas, essa outra globalização seria “um mundo em que caibam muitos mundos”. Mais do que um futuro com diversas identidades, essa utopia procura um futuro com diversos modos de vida, em que o local tem a ver com o global mas não há predação de um pelo outro.

Resumindo mas não fechando a minha proposta pro videogame, pra uma cultura de videogame não-fascista, não apaixonada pela estabilidade mortal das coisas que deixam de ser, eu diria que ela envolve algum tipo de encontro sincrético entre coisas, gentes e lugares que já existem na cidade, que de alguma forma são resistentes e tentam atualizar seu potencial contra a predação capitalista. A utopia aqui é a seguinte: videogame como cultura popular, videogame como cultura de rua, videogame como cultura de resistência, videogame como cultura antifascista, passe livre pra que nenhuma catraca se coloque entre a gente e o videogame da cidade. Abolir a polícia também ajudaria bastante. Tudo isso pra que não seja possível falar de videogame sem falar de tudo isso.


¹ HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

² https://menosplaystation.blogspot.com/2018/10/community-versus-comunidade.html

³ SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.

⁴ TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. n-1 edições, 2019.

⁵ SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.

⁶ FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011.

⁷ SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

FASCISMO GAMER: O uso político do homem doméstico pelo trumpismo-bolsonarismo

Steve Bannon, dez anos antes de ingressar na campanha de Donald Trump pela presidência dos Estados Unidos, estava saindo de sua carreira em Hollywood¹ para participar do mercado de microtransações em World of Warcraft através da empresa de gold farming² Internet Gaming Entertainment (GREEN, 2017), sediada em Hong Kong mas atuante no cenário global do jogo mundialmente popular. A prática de microtransações - ou seja: a troca de recursos e vantagens ingame por dinheiro de verdade - não é uma novidade no videogame. Ainda nos anos 70, esse tipo de mercado ocorria em RPGs online como Oubliette, que rodavam nas redes de computadores universitárias anteriores à internet moderna (WILLIAMS, 2017, p. 65). As redes eram restritas a grupos com alguma formação técnica que justificasse seu acesso, de modo que as microtransações eram uma prática secundária numa cultura bastante restrita. A novidade que a Internet Gaming Entertainment instaura nos anos 2000 é a presença de uma prática extrativista de escala industrial (GREEN, 2017) em uma internet muito mais acessível, “democratizada” em certo sentido, e uma cultura de MMOs (Massive Multiplayer Online) cada vez mais próxima de uma cultura de massas mainstream, bem distante do interesse nerd obscuro de outrora. Essa diferença de escala e abrangência torna a operação empresarial muito mais lucrativa e também mais influente em um quadro cultural geral.

Mas o modelo de negócio da IGE precisou lidar frontalmente com os jogadores não-profissionais: a IGE empregava centenas de trabalhadores por baixos salários para farmar os personagens, o que gerou protestos online dos gamers revoltados, incluindo manifestações anti-chinesas de fundo xenófobo e racista, e até um processo contra a empresa sob a alegação de desequilibrar “a fruição coletiva do jogo” (GREEN, 2017). A própria Blizzard adotou uma política para excluir constantemente as contas de usuários ligados à prática de gold farming (GREEN, 2017), assumindo uma postura de lealdade para com seus jogadores não-profissionais. Tudo isso forçou a Internet Gaming Entertainment a um rebranding e reformulação de seu modelo, enquanto os estúdios de jogos passaram a assumir as microtransações como parte de suas atividades (GREEN, 2017), eliminando aos poucos a natureza subterrânea desse mercado. Bannon sai da empresa nesse momento, tendo aprendido lições importantes sobre os gamers. Explico: as atividades da empresa perturbavam o funcionamento normal do jogo, garantindo a infiltração de problemas reais. Não qualquer problema, mas os mesmos problemas que faziam do videogame um refúgio. Problemas do capitalismo. A venda de itens que, no universo do jogo só poderiam ser conquistados por mérito, passam a ser comercializados com dinheiro real - há uma quebra não só do que Huizinga chamaria de círculo mágico (a sustentação de uma espécie de crença na verdade do jogo, desde que todas as partes considerem que as regras são justas e estão sendo respeitadas) (HUIZINGA, 2012) como também o jogo perde a função de servir como um refúgio dos sofrimentos e injustiças do capitalismo e do mundo do trabalho lá fora. Esse processo de mercantilização do jogo é sentido pelos jogadores como uma força além de seu poder de decisão, uma vez que há no jogo digital um fechamento técnico que restringe a participação inventiva dos usuários. Assim como na vida real, a injustiça oriunda do abuso de poder econômico e a impossibilidade de participação política se transforma em revolta popular, luta de classes dos usuários contra as empresas e sua gestão do poder. Os gamers, no entanto, não percebem que estão se revoltando contra o capitalismo, contra a penetração da razão capitalista no mundo do jogo, e imaginam que se trata de um episódio sem conexão com o mundo lá fora.

Bannon aproveitou a despolitização gamer para dar a ela um conteúdo que beneficiasse o seu modo de vida burguês e não oferecesse qualquer risco a seu projeto de sociedade neo-reacionário. Em 2012 Bannon assume a presidência do Breitbart News, substituindo o antigo dono, seu aliado e velho conhecido da época hollywoodiana, Andrew Breitbart, que havia morrido (GREEN, 2017). Bannon dá continuidade ao legado de extrema direita do tabloide, inaugurado como um esforço de propaganda pró-Israel (SOLOV, 2021), e começa a aplicar o que aprendeu em Hong Kong sobre os gamers em 2015, contratando o agitador antifeminista Milo Yiannopoulos como colunista de tecnologia (GREEN, 2017) para conquistar o engajamento dessa demografia. Em 2014 se inicia a campanha online Gamergate, que seus apologistas classificam como uma revolta contra a “falta de ética no jornalismo de games”, movida por uma ampla aliança midiática entre os chamados chans, redes sociais mais conhecidas como Twitter e Facebook, canais do Youtube, tabloides como o Breitbart (que contava com a coluna de Yiannopoulos no momento), entre outros atores que disputavam a politização do gamer numa direção direitista e extremamente reacionária. A campanha parte de alegações de que a desenvolvedora de jogos independente Zoë Quinn teria trocado favores sexuais por cobertura midiática de seus jogos (GOULART; NARDI, 2017, p. 255) - que, vale observar: eram pouco convencionais, baseados em texto e não em gráficos, não se adequando ao gosto médio dos gamers. Capitalizando sobre o fato de que os gamers, em geral, seriam incapazes de considerar aspectos sistêmicos de qualquer crise, essa conjunção de atores desenvolveu o gamergate como uma conspiração antifeminista e tipicamente fascista: as mulheres estariam invadindo o “último refúgio masculino”, os videogames, para estragar a diversão. Elas traziam consigo a corrupção desse santuário masculino. A natureza pouco convencional de Depression Quest, seu jogo mais famoso, fortalece o discurso da corrupção e combina com a crítica de arte reacionária feita por youtubers e perfis leigos, sempre em defesa do retorno anacrônico de valores superados pela própria história da arte. Com o engajamento gamer, o Breitbart News salta de uma fonte de informações desprezível no ambiente midiático para um dos protagonistas nas conversas de rede social. O veículo se mantém relevante alimentando e criando polêmicas de cunho antifeminista e reacionário, que geram um grande volume de interações raivosas, em aliança com influenciadores e usuários de diferentes tamanhos e alcance. A participação dos que repudiam tais conteúdos auxilia na manutenção de sua visibilidade, deixando poucas alternativas de resistência no campo online. Nas palavras de Bannon, seu objetivo em relação aos gamers seria “ativar esse exército” que viria pelo Gamergate e ficaria pela política de extrema direita e por Trump (GREEN, 2017).

Em 2018 Steve Bannon presta consultoria a Bolsonaro em sua campanha (PIRES, 2021), tendo como um dos efeitos dessa colaboração uma mudança no discurso bolsonarista sobre games, que vai do tradicional pânico moral conservador (“É um crime, videogame. Você tem de coibir o máximo possível, a criança não aprende nada.” [ISTOÉ, 2021]) aos acenos amistosos e promessas. Em 29 de julho de 2019, Bolsonaro viraliza ao telefonar para o atleta de e-sports Gabriel “FalleN”, prometendo reforma na tributação dos games (ARAÚJO, 2021). No mês seguinte, Bolsonaro publica um vídeo no Twitter em que joga um game de tiro e escreve “forte abraço, gamers!”. Em agosto de 2020, o filho mais novo de Bolsonaro, jogador de League of Legends (uma das principais marcas de e-sports), participa de reunião não-agendada com o então secretário de cultura Mario Frias para falar sobre “o futuro dos e-sports” (CARVALHO, 2021). A estratégia de aproximação dá frutos e, conforme demonstra matéria da Valor (AGOSTINE, 2021), os gamers passam a compor o núcleo duro de apoiadores de Bolsonaro em 2020, junto a militares e religiosos.

Figura 1: Flyer divulgando os modelos cocktail table de gabinetes da PMC Electronics.

A razão desse caráter despolitizado do gamer, tão bem aproveitado pelos fascistas, pode ser explicado, em parte, pela passagem do videogame como oportunidade de diversão pública e coletiva para o videogame como hábito de consumo privado e individual, mudança que se observa na narrativa publicitária. Podemos observar também uma mudança nos jogadores ideais, retratados inicialmente como juventude boêmia nos fliperamas (Figura 1) e famílias nos consoles domésticos e microcomputadores, posteriormente sendo reduzidos aos meninos e homens jovens cisgêneros heterossexuais (GOULART; NARDI, 2017, p. 253). Uma peça chave dessa mudança ocorre na popularização dos microcomputadores nos anos 1980, fenômeno especialmente importante na Europa e nos Estados Unidos, mas que afeta a formação das identidades nerd e gamer também no Brasil sob efeito de uma cultura de massa globalizada. Buscando superar o esgotamento do mercado de games da primeira metade da década de 80, o chamado crash de 83 (GOULART; NARDI, 2017, p. 253), determinante na experiência do videogame estadunidense, ou simplesmente tentando evitar que o fenômeno se repita em terras europeias, os microcomputadores se vendem como um investimento na formação técnica, intelectual, profissional e até mesmo moral dos jovens, buscando conquistar os bolsos dos pais e mães preocupados com o destino de seus filhos (Figura 2) e pouco inclinados a adquirir outro brinquedo eletrônico caro. Vale observar que nos anos 80 os fliperamas ainda eram muito fortes - considera-se esse período como a era de ouro dos arcades (WILLIAMS, 2017, p. 71) - e a sombra de um estilo de vida boêmio, o fantasma dos vícios, excessos e perigos de uma vida indisciplinada na cidade, ainda marcava o videogame. Ou seja: um elemento formativo da identidade gamer é a diferenciação entre o jogador doméstico - diversão sadia do estudante aplicado e protegido no seio da família nuclear - e o jogador do arcade - perda de tempo, vadiagem e exposição aos riscos da vida na cidade. No Brasil essa variação boêmia pode ser reconhecida em termos como “fliperama de boteco” e “fliperama de rodoviária”, que descrevem a experiência brasileira dos arcades. Naturalmente o tipo doméstico irá se adaptar melhor aos homens, brancos e outros marcadores que são, por norma, associados a ideias de segurança, estabilidade etc. As ideologias de direita como supremacismo branco, masculinismo, otimismo tecnocrático, entre outras, acabam sendo um complemento lógico ao jogador doméstico. As mulheres estão entre as primeiras excluídas da identidade gamer pois a tendência hegemônica é que experimentem o contexto doméstico como um ambiente de trabalho reprodutivo e não de preparo para um futuro em que serão dominantes. O homem doméstico - o nerd - não herda da mulher as responsabilidades do lar, apenas perde do homem sua potência pública.

Figura 2: Propaganda do microcomputador Tandy TRS-80.

A promessa de um futuro glorioso a esse novo tipo de homem doméstico, concretamente a serviço da formação de trabalhadores intelectuais que se tornam cada vez mais necessários no quadro de um capitalismo informatizado, se coloca ideologicamente como garantia de mobilidade social meteórica: o nerd de hoje seria, na promessa capitalista, o magnata da tecnologia amanhã. O consumo de computadores e novas mídias relacionadas é, ao mesmo tempo, o bilhete para esse futuro burguês altamente tecnológico e a ruptura com uma identificação ou consciência de classe entre os de baixo. A frustração desse futuro deixa nas mãos do nerd apenas o consumismo de artigos high tech sobre o qual ele investiu toda sua vida, e o ressentimento contra corpos invasores (mulheres, pessoas não-brancas, LGBTQIA+ etc.) que nunca compraram a promessa com tanta entrega pois sabiam que ela não lhes era destinada.

¹ Primeiro como banqueiro na Goldman Sachs, explorando a lucratividade do império cinematográfico hollywoodiano, em seguida como roteirista, diretor e produtor de filmes como In The Face of Evil - um elogio do anticomunismo de Reagan que Bannon recuperou para estabelecer um paralelismo com o que ele julgava ser a ameaça anti-ocidente do islamismo radical após 11 de setembro - e Border Wars: The Battle Over Illegal Immigration, entre outros títulos paranoicos típicos dos temas conspiracionistas de extrema direita que hoje reconhecemos nos discursos trumpista e bolsonarista. (GREEN, 2017)

² 
Executar ações dentro do jogo que resultem no ganho de itens valiosos na economia interna do jogo. (FALCÃO; MARQUES; MUSSA, 2020 p. 13)

REFERÊNCIAS POR ORDEM DE APARIÇÃO

GREEN, Joshua. Devil's Bargain. New York: Penguin Press, 2017.

WILLIAMS, Andrew. History of Digital Games: Developments in Art, Design and Interaction. Nova Iorque, CRC Press, 2017.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012.

SOLOV, Larry. Breitbart News Network: Born in the USA, conceived in Israel. Breitbart News, 17 nov. 2015. Disponível em: https://www.breitbart.com/the-media/2015/11/17/breitbart-news-network-born-in-the-usa-conceived-in-israel/. Acesso em: 5 jul. 2021.

GOULART, Lucas; NARDI, Henrique Caetano. O Circuito da Diversão ou Da Ludologia à Ideologia: Diversão Escapismo e Exclusão na Cultura de Jogo Digital. Dossiê comunicação, mídia, videogames. Logos: Comunicação e Universidade, Rio de Janeiro, vol. 26, n. 2, p. 72-85, 2019.

PIRES, Breiller. Os laços do clã Bolsonaro com Steve Bannon. El País, São Paulo: 20 ago. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-20/os-lacos-do-cla-bolsonaro-com-steve-bannon.html. Acesso em: 7 jul. 2021.

Bolsonaro nem sempre foi fã de games. ISTOÉ, 16 ago. 2019. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-nem-sempre-foi-fa-de-games/amp/. Acesso em: 7 jul. 2021.

ARAÚJO, Henrique. Como o mundo dos games virou arma nas mãos de Bolsonaro. O Povo, 13 mai. 2021. Disponível em: https://mais.opovo.com.br/reportagens-especiais/bolsonaro-e-o-mundo-do-game/2021/05/13/como-o-mundo-dos-games-virou-arma-nas-maos-de-bolsonaro.html. Acesso em: 7 jul. 2021.

CARVALHO, Daniel. Mario Frias recebe filho de Bolsonaro para reunião sobre esportes eletrônicos. Folha de S.Paulo, 31 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/mario-frias-recebe-filho-de-bolsonaro-para-reuniao-sobre-esportes-eletronicos.shtml. Acesso em: 7 jul. 2021.

AGOSTINE, Cristiane. Núcleo duro de Bolsonaro é iniciante na política. Valor Econômico, São Paulo, 3 out. 2018. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/10/03/nucleo-duro-de-bolsonaro-e-iniciante-na-politica.ghtml. Acesso em: 7 jul. 2021.

FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan. BOYCOTTBLIZZARD: capitalismo de plataforma e a colonização do jogo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. XX-YY, abr./jul. 2020.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

DESERTOS DIVERTIDOS: Videogame mainstream como monocultura e profissionalização do jogar

“Nossas vidas são território ocupado. [...] Não apenas o nosso tempo, mas também as nossas ambições, nossa sexualidade, nossos valores, nossa própria concepção do que significa ser humano. Está tudo ocupado, moldado de acordo com as demandas do mercado.” (CRIMETHINC, 2012, p. 12)

“A variedade, tanto na sociedade quanto na agricultura, longe de ser limitada, deve ser promovida como um valor positivo. Estamos agora muito familiarizados com o fato de que quanto mais simplificado for um ecossistema – e, na agricultura, quanto mais limitada for a variedade de espécies envolvidas – mais provável é que o ecossistema se decomponha. [...] O aspecto mais desastroso das metodologias agrícolas predominantes, com ênfase na monocultura, híbridos de culturas e produtos químicos, tem sido a simplificação que introduziram no cultivo de alimentos – uma simplificação que ocorre em uma escala tão global que pode muito bem lançar o planeta de volta a um estágio evolutivo onde poderia suportar apenas formas de vida mais simples.” (BOOKCHIN, 2021)

Murray Bookchin falava sobre variedade, e é um pouco o elogio da variedade o tema deste texto. A diversão tem a ver com nossa conversa: não falaremos de agricultura, mas de videogame, que - por estranho que possa soar - é coisa muito parecida. Como frequentemente nos surpreendemos esquecendo e Bookchin faz o favor de lembrar, “A agricultura é uma forma de cultura” (BOOKCHIN, 2021), e sua redução a um mero negócio é um problema que precisamos resolver. Com o videogame não é diferente.

O entrosamento do videogame com o capitalismo se dá, nas tendências mais recentes, de duas formas: a ludificação do trabalho ou dos estudos através da gamificação e a profissionalização do jogar via e-sports e streaming - com interpenetrações entre essas duas últimas. Todas levam a um destino monocultural, a uma desertificação.

De acordo com Aline Job,

“a gamificação surgiu como uma estratégia de negócio para o engajamento de consumidores de produtos e de serviços e os resultados dos usos permanecem atrelados, de forma bastante forte, aos programas de fidelidade [...] e aos incentivos contínuos de atividades gamificadas para que o usuário ou a usuária se mantenha no ciclo de progressão.” (SILVA, 2019, p. 1222)

Ou seja: a gamificação aparece como técnica de produção de um consumidor perfeito, através da aplicação de elementos de jogo em contextos de não jogo. Posteriormente será usada na sujeição de trabalhadores e estudantes. O que a gamificação não é: o uso dos videogames na sala de aula ou nos espaços de trabalho tal como eles se dão na cultura do videogame. Embora tecnologias digitais e até games possam ser desenvolvidos para servir à produção de um consumidor, estudante ou trabalhador perfeitamente produtivos, não é o fato digital nem o game como produto aplicado que constitui a gamificação: sua finalidade é a fabricação de subjetividades hiperprodutivas e não a oportunização de uma experiência de jogo - quanto mais invisíveis os elementos de jogo, mais perfeita é a gamificação. Essa subjetividade hiperprodutiva atualiza o trabalhador clássico, disciplinado, para uma realidade de capitalismo global informatizado que nunca descansa e nada perde. De acordo com Job, PJ Rey define a gamificação como “uma nova forma de condicionamento [...], a padronização de indivíduos que resolvem problemas e se automotivam, desenvolvendo sujeitos que correspondem às necessidades do capitalismo tardio.” (SILVA, 2019, p. 1226) Ainda: “a gamificação quer se associar à ideia de jogo como algo não produtivo, para assim mascarar sua manipulação ou exploração, que, se fossem evidentes, causariam um desencanto em relação aos sistemas gamificados.” (SILVA, 2019, p. 1226)

Já nos anos 80 os microcomputadores eram vendidos como um meio para a diversão e para o trabalho, investimento no futuro profissional e no lazer do futuro, máquina que se refere igualmente ao brinquedo e ao instrumento, se destina tanto ao uso lúdico quanto ao uso laboral. A transformação do trabalho em lazer, ou o apagamento da fronteira que separa esses tempos, embora constituísse um horizonte otimista na cultura hacker, não tem bom destino no capitalismo. Essa perturbação acaba por borrar as diferenças entre o tempo controlado e o tempo relativamente livre do descanso, significando que estamos sempre produtivos, disponíveis para atividades lucrativas. Todo o tempo se torna um tempo sem fricção e sem medida, superveloz, uma vez que não há mais fim nem começo. Dos serviços de delivery “à distância de um toque” ao feed das redes sociais que nos embalam numa torrente de informações que lemos sem demora pois ansiosos pela próxima manchete urgente ou promoção imperdível que a rolagem promete, as plataformas formam pessoas que não são direito nem leitoras, nem produtoras, nem consumidoras, nem trabalhadoras, nem jogadoras… embora sejam tudo isso num potencial nunca realizado, pois permanentemente frustrado pela promessa seguinte - no tempo interminável da supervelocidade, pessoas são meras condutoras de fluxos, cujas particularidades são reconhecidas apenas como dados disponíveis para uso publicitário. A pessoa-condutora-de-fluxos se encontra tragada pelo feed. A aplicação de uma lógica do feed aos contextos de trabalho tem como objetivo nos tornar hiperprodutivos no curto prazo, até o esgotamento e a substituição por novos indivíduos motivados, abusando da insensibilidade com que as novas tecnologias sociais digitais informam a experiência do usuário - é o usuário a figura que melhor define esse novo papel borrado do nunca-exatamente-esse-ou-aquele-papel. Esse estado indefinido do ser que nunca está fixo num papel social disciplinado, de certa forma próximo ao que seria um ideal de vida liberada do capital, se torna - no capitalismo - a eternidade de um servir sem parar ao capital. Ao contrário do esperado e prometido, há uma simplificação no sentido negativo que Bookchin confere. No inferno produtivo, nem se divertir é divertido.

A gamificação seria uma das tendências. A segunda de que vamos falar são os e-sports. O que define os e-sports não é o reconhecimento de elementos esportivos no videogame como a competição, o desenvolvimento de habilidades ou a composição coletiva de regras. Esses são aspectos comuns ao videogame em geral (embora o videogame não-esportivo seja uma realidade, apenas em proporção menor e menos presente no imaginário médio sobre o videogame). O que realmente define a categoria e-sports como ente cultural destacado é sua adequação ao esporte na forma como ele aparece no grande empreendimento, nos megaeventos, no entretenimento de massa televisionado, nos grandes clubes etc. Em outras palavras: o esporte aqui é o esporte como modelo de negócio, definindo-se a partir de suas partes mais acessórias, que servem para converter uma cultura esportiva em condutora de fluxo de capital a se acumular.

Não faz sentido, portanto, questionar a validade do videogame como esporte avaliando se suas características mais essenciais são condizentes com aquelas dos esportes tradicionais, que são assim reconhecidos sem dificuldade, como o futebol ou o xadrez. O resultado dessa avaliação será falsa pois só serão conformados aos e-sports aqueles jogos que naturalmente possuem as características necessárias como seu valor competitivo, um certo grau de complexidade nas regras que permita variação entre as habilidades dos jogadores e o apelo de uma partida como show de entretenimento. Somos forçados a concluir que videogames são esportes se partirmos daí, uma vez que nunca veremos jogos experimentais, com foco em narrativa, não-competitivos etc. em tal situação - e, caso esses outros tipos de jogos acabassem na condição de e-sports por algum acidente de percurso, o público e não a crítica tomaria a dianteira na recusa. O dilema é parecido com o videogame como arte ou os chamados art games: certos tipos são adequados, outros acabam sendo expelidos por suas próprias características.

O videogame sofre constantemente essa pressão para se conformar a campos que estão além do seu próprio, o que em parte é herança de suas origens transdisciplinares. Alguns campos são mais lucrativos e outros apenas metabolizantes. As questões “videogame é arte?” e “videogame é esporte?” nos envolvem em discussões infrutíferas de conclusões auto-evidentes (é arte o que serve bem ao campo da arte e é esporte o que serve bem ao campo do esporte) e deixam escapar que nenhum dos dois acolhe o videogame em sua variedade. O problema não está exatamente aí, pois não nos ajudaria em nada se todos os videogames fossem arte ou todos fossem esporte: essa adequação seria inimiga da variedade, pois seria necessário fazer o encaixe no campo, cada campo contendo seus próprios limites. Seria absurdo imaginar todo jogo como arte e esporte ao mesmo tempo - a não ser que estejamos falando de uma performance de jogador esteticamente fora de série, como um tipo de futebol-arte, mas nem mesmo o futebol-arte é arte. O jogo como “fita” - obra acabada, desse ou daquele gênero - é muito pouco provável que se encaixe em ambas categorias, que possuem funções muito diferentes, e isso teria pouco efeito caso viesse a ocorrer. O que nos interessa é que essa associação a campos mais fortes se intensifica num momento em que o videogame perdeu o lugar que tinha no chão da cidade e se firmou como diversão doméstica na experiência majoritária; a falta de um ambiente próprio, no sentido territorial bem concreto do lugar em que se pisa, é uma novidade na história do videogame (ou das diversões populares, para um recorte temporal mais amplo). O resultado dessa falta de um ambiente menos controlado é que o conhecimento do videogame em sua variedade é obstaculizado por uma curadoria algorítmica que vai privilegiar os tipos de jogos mais redundantes, entregando-os a consumidores cada vez mais especializados, num processo de eliminação dos riscos no modelo de negócio. O jogador também passa a ser cultivado numa tendência monocultural, sendo a profissionalização do jogar o estágio mais crítico dessa especialização. No lugar de um momento de lazer e livre descoberta, o jogar se constitui como uma segunda, terceira ou quarta jornada de trabalho, eventualmente remunerada, o que é também mais uma forma de prender o jogador nessa relação. A remuneração do lazer profissionalizado - aliada à precarização do trabalho - passa a integrar a renda necessária para viver, de forma que o jogador se torna financeiramente dependente do jogo, garantindo a fidelidade do público-consumidor. Em muitos casos, é apenas a esperança de uma remuneração (monetização, no vocabulário das plataformas) que garante essa fidelidade - uma espécie de escravidão por dívida descolada, divertida e high tech, frequentemente com tintas progressistas. Segundo a razão capitalista que nos domina, investir tempo e esforço numa atividade de lazer se torna uma escolha ilógica quando a outra opção de relação com o mesmo tipo de atividade promete ganho em dinheiro. Também se torna  ilógico escolher um jogo independente obscuro enquanto há títulos muito mais lucrativos no sentido de gerar engajamento nos fluxos algorítmicos das plataformas. Como o nosso tempo de atenção disponível é limitado, fazemos escolhas em prejuízo dos jogos que não nos pagam.

O streamer - o usuário que joga online como show performático - apresenta maior abertura para a diferença do que o jogador profissional de e-sports, pelo menos em teoria. Na prática, a escolha por jogos que não redundem os fluxos algorítmicos são punidas pelas plataformas, não sendo anexadas nas tags e marcas mais movimentadas. Alguns nichos menos lucrativos e de crescimento mais lento, não associados a jogos e-sports, se formam ao redor de gêneros que se adaptam melhor ao show, como é o caso dos jogos de terror. Jogos voltados ao público infantil como Minecraft também constituem nichos lucrativos - no caso de Minecraft, o título sozinho é um nicho e rivaliza com os e-sports mais fortes. O mercado, na forma dos dados mercantilizados, é o curador mais forte do videogame online. Isso constitui ameaça à variedade dos jogos, autores e jogadores, estabelecendo uma crescente pauperização cultural e política no horizonte do videogame. A consequência política já se apresenta de forma muito evidente, como podemos ver no fenômeno do fascismo gamer.

A ideia de desertos divertidos que proponho no título deste artigo deriva dos desertos verdes da crítica campesina às monoculturas, numa tentativa de estabelecer analogias e pontos de contato entre agricultura e cultura do videogame. Como explica Vanderlei J. Zacchi em seu artigo sobre as Visões de Cultura no MST (ZACCHI, 2010),

“A imbricação entre o cultivo da terra e a identidade cultural de comunidades rurais é bem ilustrada pelo caso dos chamados desertos verdes, que são enormes áreas de monocultivo de eucalipto. Suas consequências podem ser múltiplas e duradouras. No âmbito ecológico e agrário, podem ocorrer a desertificação e a diminuição da biodiversidade. No âmbito econômico e sociocultural, a monocultura de eucalipto pode causar a especialização da atividade de produção, o que implica o empobrecimento de técnicas agrárias e a ruptura de tradições produtivas, como a pecuária e agricultura de subsistência, que ainda hoje resiste nos pequenos espaços que separam as grandes propriedades. Estendendo-se por áreas gigantescas, essas plantações de eucalipto englobam diversos latifúndios, e essas pequenas áreas que existem entre eles podem desaparecer.” 

Em suma: os desertos verdes produzem degradação ambiental e aculturação dos povos, reduzindo a variedade de técnicas, artes, seres e saberes por onde passa. Que o caráter “verde” da coisa não iluda os olhares urbanizados: o verde aqui é outro, um verde de empobrecimento e esquecimento não só dos meios de sobrevivência, mas dos modos de vida em toda a sua complexidade, incluindo as cosmovisões e tradições populares. Tais desertos não servem para ninguém viver neles, mas são um ótimo negócio justamente para quem não vive ali, eis o problema. No Manifesto das Mulheres da Via Campesina (2021) de 2008, as militantes feministas declaram que “as empresas do agronegócio não estão preocupadas em produzir comida, só em produzir lucro, transformando o campo em desertos verdes (de eucalipto, de soja, de cana).” Em Zacchi, para os campesinos, o “temor maior é que a homogeneização das plantações venha a corresponder a uma homogeneização semelhante no modo de viver e pensar da população local.” (ZACCHI, 2010 p. 2) O deserto verde, “mais que um oxímoro, torna-se uma metáfora para o pensamento único.” (ZACCHI p. 1) Essa preocupação com o “pensamento único” também aparece em Murray Bookchin, quando diz: “o que marca de forma única a mentalidade burguesa é o rebaixamento da arte, dos valores e da racionalidade a meras ferramentas” (BOOKCHIN, 2021); antes dele, Adorno e Horkheimer já falavam sobre esse pensar burguês, que chegam a chamar de “antirrazão do capitalismo totalitário” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 53), em que “a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986). Não há exatamente um fim e começo dessa simplificação negativa: o pensamento único é produzido pela degradação que produz. Como coloca Milton Santos (SANTOS, 2013, p. 52), o “atual sistema técnico dominante torna-se invasor quando não consegue exercer sua tendência ao autocrescimento: é desse modo que ele procura impor sua lei aos sistemas técnicos vizinhos.” A devastação como projeto cria o ambiente devastado como chão em que pisamos, e daí tendemos à incapacidade de imaginar outra coisa que não seja sua ampliação.

Esse tipo de totalitarismo de mercado, já expresso na ideia de antirrazão do capitalismo totalitário de Adorno e Horkheimer, alcança uma capilaridade e força sem precedentes com o surgimento da internet e, principalmente, com o fortalecimento das big techs, como Morozov (2018) nomeia as empresas de tecnologia, frequentemente oriundas do Vale do Silício, que baseiam suas atividades na extração de dados (a partir dos inputs “voluntários” dos usuários, entre aspas pois sua adesão está psicologicamente condicionada via design ou imposta pela escassez de alternativas). São exemplos de big techs as empresas-plataforma como Google, Facebook, Twitter, Amazon, entre outras, sempre em processo de expansão por aquisição de empresas menores ou por cooptação de mercados consumidores em função da concorrência predatória com as economias locais, como se dá no caso da relação entre a Amazon e as livrarias tradicionais. Além disso, as big techs ocupam com serviços privados precarizados os vácuos deixados pelas políticas de austeridade neoliberais - o crescimento da Uber no Brasil se relaciona com os preços abusivos das passagens de ônibus, por exemplo. O que deve ficar claro para nós é que o fortalecimento dessas empresas ganha impulso com o enfraquecimento do bem comum, de modo que a máxima tatcheriana “não há alternativa” se instala não apenas na nossa imaginação política, mas nas possibilidades que temos para dar conta de “ganhar a vida”. Acabamos presos na posição ambígua entre consumidor e escravo das plataformas, na esperança de monetizar tudo o que pudermos, cada pequeno traço do que fazemos e do que temos, seja um carro, nossa força de trabalho, a água do banho que tomamos, nossa personalidade ou nossos momentos de lazer. A extração de dados se converte na mineração dos seres humanos - e, assim como se dá no garimpo, tende ao esgotamento. No caso dos seres humanos, o esgotamento da própria humanidade, o que ironicamente nos recoloca na natureza, ao menos nas condições em que ela se encontra no capitalismo: vazia de si e vetor de capital.

De volta a Bookchin, ele segue na sua crítica da agricultura capitalista que “concebe o cultivo de alimentos como uma empresa a ser operada com o propósito de gerar lucro em uma economia de mercado”, de forma que ela “não difere mais de qualquer ramo da indústria como a siderurgia ou a produção de automóveis” (BOOKCHIN, 2021). Esse achatamento de diferentes ramos produtivos ocorre porque, do ponto de vista burguês, a atividade interessante não é a produção de alimentos ou de videogames, mas a própria exploração do trabalho a produzir mais valia. O investimento neste ou naquele ramo é uma escolha de cálculo numérico subordinado a esse acúmulo, indiferente às características das atividades - por isso elas podem ser devastadoras em muitos sentidos, já que tais consequências entram no cálculo apenas marginalmente, quando a aceleração desse modo de funcionamento empresarial é desafiada por crises que forçam a sociedade a questioná-lo, pois seguir na mesma direção seria insuportável. Técnicas de controle social como a gamificação operam esse achatamento de modo a dar continuidade a essa indiferença, ao mesmo tempo em que procuram compensar o sofrimento com prazer lúdico.

Compreendendo que há verdes e verdes, podemos pensar a diversão como coisa pra se desconfiar, nem sempre positiva, definindo o deserto divertido como uma prática capitalista que preda a variedade nas formas de criar, distribuir, jogar e pensar videogame, deixando em seu rastro um vazio de possibilidades, enquanto nos torna insensíveis a esse processo, nos encantando com prazeres prometidos e imediatamente traídos pela rotina cruel do trabalho.

O caráter totalitário da antirrazão capitalista se dá pela sempre intensificada subalternização de tudo à sua indiferença devoradora, pelo esmagamento de tudo pelo nada, da vida pela morte. “A antirrazão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 53) As necessidades aqui devem ser compreendidas com generosidade, como necessidade de beleza, de alegria, de prazer e de tudo que nos difere de uma mercadoria. Em outras palavras: gozar a liberdade é necessário. Mas a aplicação desse gozo a uma máquina de fazer dinheiro de gringo é uma farsa, já não estamos fazendo nada de necessário, mas obedecendo um imperativo de força, sofrendo uma dominação.


REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

BOOKCHIN, Murray. Agricultura radical. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/murray-bookchin-agricultura-radical. Acesso em: 8 jul. 2021.

CRIMETHINC. Trabalho. Ponta Grossa: Editora Monstro dos Mares, 2012.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

SILVA, Aline Conceição Job da. Entre o letramento em games e a gamificação: as mecânicas em jogo. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.22, n. 4, p. 1221-1235, out./dez. 2019.

Via Campesina do Rio Grande do Sul. Manifesto das Mulheres da Via Campesina. Disponível em: https://www.biodiversidadla.org/Documentos/Manifesto-das-Mulheres-da-Via-Campesina. Acesso em: 5 jul. 2021.

ZACCHI, Vanderlei J. Visões de cultura no MST: Cultivar a terra e transformar a realidade. Anais do VI Simpósio Nacional Estado e Poder: Cultura. GT 2 - Comunidades, Identidades e Cultura no Brasil. Aracaju, out. 2010.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

QUE PAPO É ESSE DE "GAME DESIGN NÃO EXISTE"?


À guisa de introdução: vai tomar no cu tranquilo quem é de direita e quer determinar quais devem ser as conversas e as tarefas da esquerda no videogame. Nunca fiz questão de fazer ponte com liberal e não é hoje que vou querer dialogar com pau no cu, não tenho nada a perder, sempre fiz meu corre por fora com quem também tá na margem e me orgulho de nunca ter precisado fazer concessões. Vai ter que conviver com o meu trabalho e com os meus hot takes também, se fode aí. Tira print, faz fofoca, esculhamba, mas aguenta que tem mais. Também odeio vocês mas faz parte. Total respeito a quem ainda tenta o diálogo, mas eu tou legal de dialogar com cobra. Agora vamos às ideias.

Confesso que me impressiona a falta de complexidade na leitura do tweet que foi comentado por mais de vinte dias nas redes sociais. Estamos tão acostumados a um senso de humor com três, quatro camadas de ironia, mas somos burros incorrigíveis quando se trata de um perfil de esquerda sendo ouvido. Não se trata de burrice, é claro: é muito mais uma vontade de crença que faz a gente preferir acreditar no absurdo (vivemos na época das mamadeiras de piroca, afinal) do que tirar do absurdo uma proposição mais profunda. Somos burros quando interessa, mas também muito sofisticados quando interessa. Estou escrevendo este post porque acho que a coisa viralizou o suficiente pra ter gente que topou com a história de forma mais atravessada, que já chegou quando quilos de memes e venenos soterravam qualquer possibilidade de discussão genuína, e acho que merecem que eu me debruce um pouquinho melhor sobre minha própria provocação - estou dando um voto de confiança pro pessoal que embarcou distraído no bagulho.

Vamos tirar a interpretação mais simplória do caminho: "game design não existe" não significa "videogames não existem", tampouco "game designers/profissionais de game design não existem", e também não significa "game design não existe como disciplina/campo de conhecimento". Tudo isso, obviamente, existe. Assim como existe a arte como os artefatos, trabalhos e conhecimentos que se realizam em contextos históricos em que o conceito de arte existe, e mesmo assim podemos nos questionar se existe arte sem que tenhamos que nos jogar na frente de um caminhão. É um exercício filosófico que nos força a olhar de outra maneira para o que fazemos e o modo como fazemos. Então fiquem tranquilos: não estou sugerindo que um suicídio em massa de game designers é desejável.

Eu sou mais um impossibilista do que um possibilista. Não tenho compromisso algum com a manutenção das coisas como elas são, e compreendo na pele que estamos presos - até certo ponto - às coisas como elas são.

O que rola parece ser o choque de duas culturas de videogame: uma parte mais profissionalizada (ainda que precarizada), que compreende o videogame como mundo do trabalho, que circula nas cidades onde os empregos são mais abundantes, os contatos internacionais são mais fáceis e as convenções mais firmes, uma cultura de videogame não apenas melhor conformada ao capitalismo como também conformista, no sentido de que se defende de um mero questionamento dessa ordem vindo de lugares que não são as posições de poder que determinam como a indústria (ou proto-indústria, ou indústria em desenvolvimento, ou arremedo de indústria) será ou deixará de ser, ou seja, localiza o inimigo na margem e não no topo; A outra parte seria o videogame como contracultura, onde se experimentam modos de fazer e princípios alternativos que não assumiram compromisso (seja por falta de necessidade ou por falta de oportunidade de integração, o que meio que dá no mesmo) com o mundo do trabalho, com o mercado ou com as disciplinas e cargos que fazem a indústria funcionar, embora realize e produza coisas que possam ser reconhecidas e (re)nomeadas tardiamente por essas disciplinas.

E aí tem uma relação desses dois mundos que é a seguinte: o mundo do trabalho, por estar melhor conformado ao capitalismo, tende a impossibilitar mundos alternativos (porque empurra a margem pra fome - e aí pro trabalho alienado em outros campos que não o videogame, o que acaba com o tempo de seus atores - e o videogame profissionalizado pro trabalho alienado no próprio campo do videogame). A margem tende a antagonizar com o mundo do trabalho porque entende que, ao mesmo tempo em que não há emprego para muita gente lá dentro - e muito menos para indivíduos de esquerda - não cabem coisas que são preciosas, que são nexos culturais importantes, e que estão sujeitos à eliminação nesse processo de integração ao mundo do trabalho. Percebam que o antagonismo não se dá num nível intra-classe, de trabalhador contra trabalhador, e sim entre os atores marginalizados e o sistema que os ameaça ora com a morte cultural, ora com a fome. O que ocorre é uma incapacidade sistêmica que a cultura de videogame como trabalho tem em absorver o videogame como contracultura sem aleijar o segundo. O que resta ao videogame como contracultura, para que continue existindo na sua integralidade, é realizar-se contrariando ou pelo menos sendo diferente das tendências e princípios que regem a narrativa (e o modelo de produção que dá uma razão histórica pro surgimento dessa narrativa) dominante.

Dizer que "game design não existe" não tem a ver com o trabalhador que conseguiu um emprego de game designer e aí temos que matar ele na paulada. "Game design não existe" sequer é uma afirmação que se basta, ela tem o mesmo valor de afirmações como "deus não existe" ou "arte não existe", ou seja: não é a verdade que está sendo dita, é a possibilidade, é o "se pá dá pra ser diferente". Questionar a existência de coisas tão normais é abrir espaço para a imaginação, nos convidar a imaginar essa não-existência, considerar a historicidade da coisa dita inexistente - pois se é possível que não exista, talvez tenha sido inventada, e talvez possa ser desinventada ou reinventada. E, se não existiu desde sempre, surgiu por quê? Para quê? Fazer esse tipo de pergunta é, na verdade, o que define as coisas questionadas como campos de conhecimento (que são sempre campos de disputa, porque o conhecimento não é uma verdade à qual nos acomodamos, é uma construção permanente). Temos que abrir espaço nas nossas cabeças para os paradoxos e contradições, caso contrário estamos abrindo mão de pensar. E, se a gente desiste de pensar, o fascismo volta novamente e mais uma vez. Ou melhor: não vai embora nunca mais, já que ele está aí firme e forte.

A confusão se dá porque estamos com muita preguiça de imaginar, tão desesperados que nos agarramos de corpo e alma aos bicos miseráveis que nos restaram pra ganhar o pão. Os trabalhadores identificados num nível pessoal com o cargo que ocupam (já que trabalham 24h por dia e portanto não vivem, sua vida é ocupar o cargo e se dedicar integralmente à disciplina quase como se a empresa fosse um monastério) acabam se ofendendo porque questionar o trabalho é questionar sua existência, porque no capitalismo as pessoas só existem para trabalhar. Trabalhar para os outros, para a indústria, para o raio que o parta que pague o aluguel caro do apartamento pequeno e a comida inflacionada (e nenhum livro). O inimigo não é "aquele perfil de esquerda sempre fazendo hot takes", saca?

Faça um exercício. Troque "game design não existe" por "game design não descreve e não precisa descrever o videogame que eu faço, que não tem compromisso com essa disciplina - que possui historicidade, não eternidade - e com o mundo do trabalho a que ela serve como ferramenta organizadora".


P.S.: Sobre design de uma perspectiva de esquerda, recomendo ouvir o podcast Clandestina, em especial o episódio "Design, precarização do trabalho e caminhos anticapitalistas pt. 1".

quarta-feira, 15 de julho de 2020

ZINERAMA

O que é um zinerama? Um zinerama é a combinação de fanzine com gabinete de fliperama. Os fliperamas normais costumam ser máquinas dedicadas exclusivamente a um jogo, como por exemplo um gabinete de Street Fighter ou um gabinete de Pac-Man. Já o zinerama é um gabinete que abriga vários jogos em circularidade, que são publicados periodicamente, como as diferentes edições de uma revista ou fanzine. É recomendado que o zinerama publique mais de um jogo por edição, para evitar que a associação entre máquina e jogo seja feita.

Nave seria um fliperama "normal": vinculado a um título

Um zinerama é diferente de uma multijogos, porque a multijogos contém uma lista permanente e extensa de títulos, enquanto o zinerama deve contar com uma curadoria mais cuidadosa, de modo a valorizar os títulos que publica e evitar que jogos menos queridos sejam esquecidos. A ideia é permitir o encontro fortuito entre aquele jogo desconhecido e alguém que possa gostar dele.

Assim como um fanzine, é importante que o zinerama tenha um nome único que comunique sua proposta e amplifique as características da máquina - que vão da escolha dos jogos e controles aos aspectos mais decorativos do gabinete.

Gabinete rodando uma placa multijogos, nao seria um zinerama.
É recomendado que todos os gabinetes de um mesmo zinerama - caso ocorra mais de um - estejam sempre atualizados com sua edição mais recente. É desencorajado que um zinerama seja exclusivo de um espaço, embora possa ocorrer que ele só se encontre num único lugar, por simples falta de recursos para a produção de novos gabinetes. Numa situação ideal seria possível encontrar um mesmo zinerama no boteco da esquina, na biblioteca do bairro e na lancheria do centro, simultaneamente.

Um zinerama pode apresentar outros programas e conteúdos que não sejam jogos, como demos e textos. Experimentar coisas novas é sempre divertido!

A periodicidade pode ser mais errática ou mais rígida, mais frequente ou mais espaçada, isso vai depender das capacidades e necessidades organizativas da comunidade que orbita o zinerama e dos ritmos do território em que as máquinas estão inseridas.

Fanzines são revistas independentes de baixa tiragem.
A periodicidade é uma característica frequente e nos interessa
bastante pra pensar o formato de zinerama.
O sci-fi e o punk são duas subculturas que desenvolveram
o formato do fanzine de forma decisiva.
É recomendado o investimento em organização e transparência no processo curatorial, embora isso seja mais difícil de conquistar num estágio inicial mais experimental. Quanto mais tradicional e capilarizado um zinerama se encontra, mais importante é sua organização e transparência nesse sentido.

Nada impede que um mesmo jogo seja publicado mais de uma vez em diferentes edições, compondo diferentes coletâneas, desde que isso não seja considerado um problema pela comunidade que orbita o zinerama. As regras podem mudar de um zinerama pro outro.

Um zinerama pode se parecer com um gabinete tradicional como também pode não se parecer. Ele pode ser sedentário ou móvel, repousando sempre nos mesmos lugares ou circulando por aí - puxado por bicicletas, carregado em mochilas, acoplado a carrinhos de sorvete e o que mais puder ser pensado.

A respeito dos aparelhos que o fazem funcionar, não há especificidades técnicas para zineramas: se é possível jogar, está certo. Computadores, telas, projetores, controles… não há uma escolha ferramental que torne a máquina mais ou menos zinerama, já que o conceito descreve apenas um formato de publicação. O conceito de zinerama não descreve o todo da máquina, apenas seu funcionamento editorial.

Um zinerama pode ter sempre o mesmo aspecto como também pode ter seu visual adaptado por edições. É interessante que ele seja reconhecível por jogadores que retornam.

Um zinerama pode apresentar títulos atuais e antigos, deste ano ou de trinta anos atrás. Pode apresentar títulos nacionais ou internacionais. É recomendado dar preferência aos pequenos autores ou a títulos desconhecidos/pouco valorizados, fora do mainstream.

Um zinerama deve remunerar os joguinistas que são apresentados em suas edições, isso pode ser feito de diversas formas. Alguns exemplos são: venda de cópias físicas no local, venda de bundles online, sistema de fichas no gabinete ou chapéu/caixinha para contribuição espontânea, venda de cartazes e artigos promocionais, realização de campeonatos no caso de jogos competitivos etc.

O Pirata de Prata pode ser considerado um
zinerama. Embora seja anterior ao conceito,
experimenta as características básicas
apresentadas neste texto.
O zinerama não é uma marca, não é um selo, não é um produto e não pertence a ninguém, é apenas um formato de publicação local do videogame independente, aproveitando da forma mais coletiva possível o lugar que ocupa na rotina e na geografia de uma cidade ou território. Por isso seu uso é absolutamente livre e replicável nas mais variadas formas que mantenham os elementos básicos descritos acima: rotatividade dos títulos espalhados por diferentes edições, coordenação entre as máquinas (quando houver mais de uma) para que exibam a edição mais atual, e abertura para a diversidade de abordagens.

Os zineramas compõem a fliperamosfera de uma cidade ou território. A fliperamosfera é mais ampla e diz respeito ao conjunto de máquinas e lugares em que é possível fruir o videogame de forma coletiva e pública. A fliperamosfera pode conter (além de zineramas): fliperamas normais (vinculados a um só título), consoles domésticos apresentados numa estrutura de locadoras, computadores em lan houses com acesso a jogos, máquinas variadas em eventos ou mostras temporárias etc. Podemos compreender que a presença de uma máquina jogável torna o espaço "fliperâmico".


O conceito de zinerama não foi desenvolvido com base apenas na imaginação, ele é o resultado conceitual de ações como as itinerâncias do Pirata de Prata, e de trocas muito frutíferas com os companheiros da Peteca. O conceito tem a função de ser um facilitador da imaginação e construção de uma outra cultura de videogame. Este texto está sujeito a alterações. Versão de 16/07/2020.